13 outubro 2016

A maratona e o hectómetro *

Carlos achava que a sua vida corria tão ao contrário que teria achado normal o registo à nascença como Solrac. Sempre achara estranhos alguns aspectos da sua deambulação pela Terra: características em novo que eram pertença de velhos, manias quase infantis quando já entrara no último terço estatístico da sua vida. Lembrava-se exactamente desta peculiaridade quando comentava a sua inscrição na colectividade do bairro, baptizada, numa década passada, com o nome ternurento de atletismo, meu amor. Entrara na flor desportiva da idade e dirigira-se ao balcão, onde o Zé Tó, de fato de treino reluzente de poliéster, suor e tenda de ciganos o recebera escorropichando uma bebida isotónica:

Boa tarde, venho inscrever-me como maratonista.

Companheiro atleta – deixa-me que te trate assim – esse não é o percurso dos grandes campeões. Pode começar-se pelo meio fundo e depois evoluir para a mãe de todas as corridas.

Percebo, Zé Tó – deixa-me que te trate assim – mas eu sou um fundista, e correr menos de 42 km, mais metro menos metro, deixa-me agoniado, com tonturas várias e desorientações diversas. Todo eu estou preparado para ir ao fundo, passe a dualidade da frase.

Carlos envergararia a camisola do atletismo, meu amor conseguindo bons resultados perante o olhar perscrutante do Zé Tó, cujo fato de treino ganhava uma patine que amortecia uma luminosidade estranhamente própria. Depois, fruto de circunstância várias que não se compadecem com explicações científicas, começaria a sua caminhada no sentido inverso: corria cada vez menos tempo, não fruto da evolução do seu desempenho, mas consequência de distâncias menores. Quando deu por si, espantado e confuso, estavam a acenar-lhe – os companheiros e as suas entranhas - com a hipótese de especialização nos 100 metros.

100 metros, Zé Tó? Tanto treino, tanto exercício, tanta ciência, tanto sacrifício para terminar o gozo passados 10 segundos? Desculpa a repetição, mas eu estou preparado para ir ao fundo, não para conter a respiração. E como é que se corre, como se doseia o esforço, como se enrijece o músculo, como se prepara a mente, como se goza a vitória? Dez segundos?

Companheiro atleta! Pois eu penso que haverá satisfação nesta vertente. Pois é mais rápida, pois é mais curta, pois exige um empenho diferente. Mas tem o seu gozo, tu verás. Experimenta. E lembras-te daquele anúncio que dizia para não negares à partida uma ciência que desconheces? Pois é isso…

Carlos sentou-se na bancada e viu os seus companheiros de colectividade a perfilarem-se no tartan para correrem um hectómetro. Fechou os olhos e deu por si concentrado na programação da corrida: o tempo aos 5.000 metros, o cansaço mental aos vinte quilómetros, a vontade de desistir passados dez e a energia recuperada para o momento de glória, porque chegar era já em si bastante. Quando abriu os olhos, tudo se tinha consumado na primeira eliminatória, abrindo espaço para uma segunda e para uma terceira, como se fosse uma nova corrida nova viagem da família que desafiava o destino no poço da morte. Dez segundos mais dez segundos mais dez segundos…

Agarrou numa camisola e escreveu Solrac. Levantou-se a contragosto, deu uma palmada amigável nas costas puídas e húmidas do Zé Tó e disse para consigo, abrindo um sorriso que não se percebia se era de tristeza, de ironia, de malícia ou conformação:

Prepara, estar pronto, largar. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 10. Já está.


JdB

* publicado originalmente em 11.10.2008

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