24 outubro 2016

Das palavras comuns

Dublin visto pelo meu iPhone - sábado passado, 8 da manhã

I.
Em 10 de Novembro de 2015, sob os auspícios da Fundação Maruzza (Itália), foi assinada a Religions of the World Charter for Childrens Pallative Care. Na mesma linha, mas assinado em tempo diferente (e já traduzida para português) havia sido redigida a Carta de Trieste - Carta dos Direitos da Criança em Fim de Vida. O primeiro documento referido foi prontamente assinado pelas principais religiões do mundo - e não só as monoteístas. Após a sessão de apresentação destes dois documentos, alguém indagou o que motivara religiões tão diferentes a terem-se posto prontamente de acordo. A resposta quanto ao que as unira naquele momento específico, de volta de um tema específico, foi rápida.

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II.
Estão seguramente 200 pessoas na sala para assistir a uma sessão conjunta de pessoal de enfermagem e de associações de crianças com cancro. O tema é este: Full vs Selective Disclosure - Breaking ‘Bad’ News to Teenagers Diagnosed with Cancer. O que dizer, como dizer, a quem dizer. Revelamos tudo ou só o necessário? Que capacidade temos para - usando o título de ensaio de uma médica presente - dizer a verdade, mas deixar espaço para a esperança? Fala-se das dificuldades inerentes, da falta de treino, das famílias desarticuladas, das crianças que sabem que vão morrer mas que não dizem que sabem que vão morrer porque é preciso proteger os Pais. Comovo-me pela primeira vez a sério quando uma médica - oncologista pediátrica - fala e diz o que sente.

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III.
Última história: Examining the effects of childhood cancer on the parental relationship. Trabalho canadiano, na zona de Calgary, duas dezenas, talvez, de famílias analisadas. Fala-se da desestruturação dos laços, do reforço dos laços, do que acaba ou começa (ainda que efemeramente) mais forte. Fala-se da intimidade do casal e citam-se duas histórias sintomáticas: 1) como podemos ter uma vida sexual reconfortante se temos um filho a sofrer? Ou esta: 2) nunca mais senti desejo. Mas uma vez por semana fazia o sacrifício em nome do "espírito de equipa". E outras histórias, como a do casal cujo momento de maior intimidade tinha sido o dos últimos momentos com um filho entre ambos. Voltei a comover-me.

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Ao contrário do que possa pensar-se, o ponto em comum destas três histórias não são as crianças, nem sequer as que sofrem de cancro. O que une estas histórias é a vulnerabilidade. E foi esse sentimento que uniu hindus, cristãos, judeus, muçulmanos, anglicanos ou talvez mesmo budistas. A vulnerabilidade falou mais alto.

A médica sueca referida na segunda história mencionou a dificuldade e o medo de dizer a uma criança / jovem que vai morrer. É o sentimento de falha, de não ter conseguido cumprir a sua função de curar. A vulnerabilidade, de novo. Não a das crianças, mas a dos adultos treinados, experientes, com cursos que explicam quase tudo, menos a forma de dizer a um jovem que vai morrer.

Uma família reforça-se em torno de uma vulnerabilidade provocada por um membro desprotegido que sofre. Uma outra família, no prédio ao lado, desfaz-se por causa de uma vulnerabilidade semelhante. Um jovem sabe que o fim se aproxima mas não fala, por causa da vulnerabilidade dos Pais. Só essa ideia de morrer sozinho por compaixão lhe agrava uma vulnerabilidade que habita o corpo e o espírito.

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6ª feira passada, dia de princípio de fim de semana para muitos. Almocei uma sanduíche acompanhada por uma Smithwick, uma boa cerveja ale. Junto a mim, na memória que era a minha única companhia, a vulnerabilidade - esse sentimento que desinstalou o bom samaritano e que é, de facto, aquilo que verdadeiramente une a espécie humana.

JdB

4 comentários:

ACC disse...

Belíssimo texto
vulnerabilidade uma palavra, um conceito, uma experiência e uma capa que todos teimamos em esconder.
E UMA FOTOGRAFIA DE ARTISTA - VERDADEIRO ARTISTA

Anónimo disse...


A minha gratidão pela vulnerabilidade tocante do post sobre a Vulnerabilidade que nos torna Humanos.

Nuno Pombo disse...

Um texto que nos diz muito mais do que nele podemos ler. A vulnerabilidade própria e alheia, o sofrimento, a incapacidade de lidarmos com o que temos pela frente. "Afasta de Mim esse cálice"... a vulnerabilidade do omnipotente. É na vulnerabilidade que nos aproximamos de Deus. Ou melhor, é na vulnerabilidade que Deus se aproxima de nós. Obrigado, João

aritnetoj disse...

Obrigada pelo seu testemunho, pela sua coragem nesta causa, por falar em vulnerabilidades...
Beijinhos comovidos

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