Na pré-história - e não vou mais atrás por não me parecer necessário encetar especulações sociológicas para as quais não me sinto competente - o homem saía de casa para caçar. Punha-se a caminho, isto é, andava. Obviamente que não havia meios de transporte, mas o verbo "andar" é relevante para a minha dissertação. Ao homem competia prover a subsistência, à mulher competia tomar conta dos filhos, da casa (o que quer que isso fosse na pré-história), da horta e do jardim, o que quer que isso, blábláblá. A vida do homem era andar até ao mamute e, depois deste morto e esquartejado, regressar ao remanso do lar. Andar, andar, andar, enquanto a mulher tinha uma espécie de horizonte geográfico que lhe era dado pela genica das crianças e pela extensão do perímetro de segurança. O homem pousa a lança, o sílex, a marreta, o osso do animal no mesmo sítio onde a mulher (o que quer que isso queira dizer), encostada ao umbral de uma porta, fitou o infinito que não sabe o que é, pôs os olhos num horizonte de onde espera ver o jantar, mais do que suscitar uma meditação sobre o sentido da vida. Não o faz, mas tem essa possibilidade.
Anos mais tarde - tantos que implicaria muitos zeros - aparecem, as guerras, as diásporas, os empregos. Ao homem cabe-lhe sair de casa, trazer uma cabeça de mouro, uma relíquia da terra santa, um cheque ou um voucher que premeia um ano bom. O osso de mamute é, agora, um nome inscrito num payroll. Ao homem compete-lhe sair armado de uma lança, uma marmita ou ticket restaurante (pouco mais recente que a pré-história). Ao homem compete-lhe andar, enquanto a mulher olha pelas crianças, pelo bonsai, pela panela de pressão ou pelos grandes glúteos. O homem anda, a mulher, no seu espírito feminino mais exacerbado e tradicional, queda-se pelo perímetro que lhe é dado pelo controlo visual sobre o que interessa.
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Temos uma coisa pela frente: esta coisa pode ser um carro, um coulis de framboesa ou um conjunto de saia e casaco. Mas esta coisa pode também ser um poema, uma música que apela ao sublime, um quadro que suscita devaneios, a infância que gera recordações. Sobre esta coisa, qualquer que ela seja, podemos raciocinar, agir, ou meditar. O que é agir? É pegar-lhe com as mãos, deitar-lhe um olhar, revirá-lo, discernir-lhe o funcionamento, e o ronronar de um motor de porsche mais não é do que o ritmo de uns versos alexandrinos. Raciocinar é um exercício mecânico que suscita uma acção. Raciocinamos sobre a ligação da maionese com o bacalhau da mesma forma que raciocinamos sobre o jogo de palavras de uns versos de herberto helder onde os silêncios preenchidos são tema de conversa ao jantar. Para este efeito, zé do pipo poderia ser uns versos de rima branca, ou uma quadra a-b-b-a. Agir é transformar o raciocínio em actos. Raciocinar e agir são a ida de um homem para o mato caçar mamutes ou para um escritório folhear o código civil anotado. Raciocinar e agir implica movimento e só o movimento permite o raciocinar e agir.
Olhar para uma codorniz no seu sarcófago, para uns versos misteriosos ou para uma buganvília por aparar é, também, a possibilidade de meditar sobre as coisas: é imaginar-lhes uma sensação, uma emoção, um frenesim, um olhar embaciado ou um sorriso que ninguém entende. Para isso temos de estar quietos, de olhos postos na coisa mas de coração posto no além onde o olhar se desfoca e a alma se concentra. Na pré-história só a mulher podia meditar sobre as coisas, porque não estava afadigada com a anatomia da besta e com o local do crânio onde assentar a pedra por lascar. Hoje, entre mulher que são provedoras e homens que se quedam sem despertador o mundo está diferente, pelo que meditar sobre as coisas é uma actividade vedada a quem, homem ou mulher, quer sair pelo mato ou pegar nuns versos e ver-lhe uma rima estranha.
JdB
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