12 outubro 2016

Poemas dos dias que correm *

"É raro um país e uma língua adquirirem quatro grandes poetas em um dia. Foi precisamente o que ocorreu em Lisboa a 8 de Março de 1914.” (George Steiner, Paris, 23.4.1928)

Põe-me as Mãos nos Ombros...

Põe-me as mãos nos ombros...
Beija-me na fronte...
Minha vida é escombros,
A minha alma insonte.

Eu não sei por quê,
Meu desde onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.

Põe a tua mão
Sobre o meu cabelo...
Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo.


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

***

Estou Cansado

Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.


Álvaro de Campos, in "Poemas"

                                                                                ***

Colhe o Dia, porque És Ele

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

Ricardo Reis, in "Odes"

***

As frases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dito à minha inércia e as descrevo na minha meditação, quando, recostado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho frases inteiras, perfeitas palavra a palavra, contexturas de dramas narram-se-me construídas no espírito, sinto o movimento métrico e verbal de grandes poemas em todas as palavras e um grande entusiasmo, como um escravo que não vejo, segue-me na penumbra. Mas se der um passo, da cadeira, onde jazo estas sensações quase cumpridas, para a mesa onde queria escrevê-las, as palavras fogem, os dramas morrem, do nexo vital que uniu o murmúrio rítmico não fica mais que uma saudade longínqua, um resto de sol sobre montes afastados, um vento que ergue as folhas ao pé do limiar deserto, um parentesco nunca revelado, a orgia dos outros, a mulher, que a nossa intuição diz que olharia pra trás, e nunca chega a existir.

Bernardo Soares, in "Livro do Desassossego"

***

Eu Queria Ter o Tempo e o Sossego Suficientes

Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes 
Para não pensar em coisa nenhuma, 
Para nem me sentir viver, 
Para só saber de mim nos olhos dos outros, reflectido. 

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 


* Fotografia e legenda enviadas por mão amiga

2 comentários:

Anónimo disse...

«....Mas se der um passo, da cadeira, onde jazo estas sensações quase cumpridas, para a mesa onde queria escrevê-las, as palavras fogem...» é exatamente assim que também eu vou acontecendo. Basta-me o sol no banco do jardim deste largo imaginado , sou inerte. O mais que ora faço é ser a mão amiga que envia fotografias e legendas. O resto é nada.

JdB disse...

"Estar" onde quer que seja nem sempre é inércia. Por vezes é um estado expectante lançado sobre a vida e sobre os outros. E por vezes os outros nao precisam de movimento ou agitação, apenas de alguém que esteja, permaneça. Ao 'o resto é nada' do Ricardo Reis contraponho Álvaro de Campos: 'eis tudo'.

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