14 novembro 2016

Vai um gin do Peter’s?

Aos 82, Leonard Cohen(1) deixou um legado maravilhoso de poesia vivida e cantada, experiências de vida entre banhos de multidão e anos de reclusão. Ora numa ilha grega, ora num mosteiro budista na Califórnia (durante cinco anos), ora pelos palcos do mundo para cantar com os fãs, de preferência ao luar. Nos concertos era generoso, com actuações de duas a três horas, de fazer inveja aos mais novos e robustos. Ele, ao contrário, mantinha-se franzino e sóbrio, de ar ascético. Entrava em palco de chapéu, fato e gravata, como se fosse para um jantar à luz das velas. Educadíssimo, tratava o público como convidados de casa em dia de festa. Por isso eram tão indefiníveis os seus concertos, conseguindo um tom intimista, cerimonioso e, simultaneamente, caloroso e sincero, como um senhor. De olhar directo e límpido, irradiava uma ternura contagiante.

Percebe-se que a poesia veio antes da música, pois já andava pelos 30 quando decidiu dedicar-se à segunda. Nascido em 1956, em Montreal, herdou da família judia, de origem polaca, uma fé viva, incansavelmente dialogante e ávida de mais horizonte. A sua arte – literária e musical – alcançou uma dimensão transcendente, a rondar a eternidade, a transbordar de uma espiritualidade estilizada, que procura o Belo. Bem que teria honrado o Nobel poder incluí-lo no friso dos premiados. Chamaram-lhe: the monk, o último dos românticos, o eterno insatisfeito, o visionário, o poeta do rock n' rol, mas tudo ficou aquém de Cohen, que se limitou a ser ele próprio – curiosamente, replicando a singularidade de outros artistas de raízes judaicas.

Nas letras, o primeiro mestre foi García Lorca. Depois, deixou que fosse a própria vida, com muitos encontros e desencontros. Quem teve a sorte de se cruzar com Leonard recorda histórias divertidas de um homem simples, inteligente, profundo, cheio de humor, lúcido e sem tiques de vedeta. Daquela humildade pura, que volta a resultar revolucionária de tão rara em que se tornou. Numa das estadias em Portugal, recusou a suite que lhe tinham reservado, mudando-se para um quarto igual ao dos outros. Noutra, a minutos de começar o concerto, no pavilhão de Cascais, descobriram-no a fazer o pino num ginásio contíguo. Anedótico: de pernas para o ar, já de fato e gravata e com bastante idade, enquanto o recheio dos bolsos se espalhava pelo chão com algum estardalhaço. Rindo-se da situação, pôs-se calmamente de pé. Nele, mesmo as acrobacias inesperadas saíam-lhe com naturalidade.

Seguem três músicas talvez menos badaladas, que explicam bem a mística de Cohen. A primeira, «In my secret life». A segunda, um dueto muito conseguido com Sharon Robinson. A terceira, uma homenagem à mítica cantora de blues e souls – Janis Joplin – dois anos depois de esta ter morrido de overdose, com apenas 27 anos, num vídeo com imagens aos recantos aconchegantes do Hotel Chelsea de Nova Iorque, que foi residência de inúmeros artistas, incluindo do próprio Cohen, de Edith Piaf, Dylan, Joplin, Frida Khalo e Diego Rivera, Cartier-Bresson, Andy Wharhol. Também ali foi escrito «2001: Odisseia no espaço», por Arthur C. Clarke.








Muitos artigos interessantes inundaram os jornais e os blogs, desde que a sua morte foi anunciada, a 7 de Novembro. Alguns dos testemunhos(2), que ajudam a descobrir a personalidade riquíssima de Leonard C., são da autoria de João Miguel Tavares e de Miguel Esteves Cardoso, seguindo um mini-aperitivo de um e de outro:

«Chorei como se tivesse morrido alguém da minha família, porque Leonard Cohen é da minha família. Demasiado importante, demasiado próximo, demasiado meu. É esse o dom dos génios: estabelecem relações íntimas com milhões de pessoas. (…) em mais ninguém encontrei tamanha capacidade de iluminar o interior das coisas e das pessoas, traduzindo por palavras o que não sabíamos sentir. Não há outro a quem possa dizer: “Dá-me só mais um verso, Leonard, e eu serei salvo.” Chamar-lhe músico ou poeta é ficar aquém. Era um profeta que nos falava das únicas duas coisas que realmente importam na vida: Deus e o amor. (…)
A razão porque nos sentimos sempre demasiado novos ao lado de Leonard Cohen é porque ele pareceu sempre demasiado velho. Já esteve lá, já leu, já viu, já viveu, já bebeu, já fumou, já sofreu, já meditou – sempre vários anos à nossa frente. Mas não em distância. Em profundidade. (…) Em Going Home, fala das aspirações de um certo “Leonard”, e diz: “He wants to write a love song/ An anthem of forgiving/ A manual for living with defeat.” Cohen não nos ensina o caminho – ele consola-nos o caminhar
João Miguel Tavares, transcrito de:

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«Passámos um fim-de-semana juntos em que me fizeste esquecer que eras o meu herói. Quando acabou fiquei com dois heróis: com o Leonard Cohen das canções e com o Leonard Cohen em carne e osso. Embebedámo-nos com Bloody Marys e, a certa altura, tu reparaste que eu tinha a mania de desdizer o que tinha acabado de dizer. Eu disse-te que era um tique português. Primeiro afirma-se um disparate ou uma verdade. Depois continua-se “E, no entanto…”  “And yet!”, gritaste, “the two greatest words in any language!” (…)

Agora morreste e obrigas-me a escrever estas palavras lavadas em lágrimas. AND YET… E, no entanto, tiveste uma vida feliz. Fizeste o que querias. Amaste e foste amado. Trabalhaste nas canções mais bonitas e elevadas do nosso tempo. Já há mais de 60 anos que andaste a falar com Deus, a preparar o teu caminho. Foste um pecador de primeira AND YET… E, no entanto, algo me diz que vais ser muito bem recebido no reino dos céus, se for para aí que combinaste ir. (…)

Toda a vida dançaste com Deus e com a morte (…) Hoje de manhã, quando ouvi You Want It Darker, como faço todas as manhãs desde que saiu o álbum, pensei que ia chorar, por ser a primeira vez que o ouvi sabendo que estavas morto. Mas não chorei. As canções fizeram o que sempre fizeram: encheram-me de força, abriram-me ao medo e à beleza de estar vivo. Adeus, Leonard Cohen, dizemos nós como se não soubéssemos que já lá estás

Miguel Esteves Cardoso, transcrito de:

A Partida definitiva não intimidava Cohen, que pareceu encarar a existência segundo um dito de Saramago: «Fugir da morte pode tornar-se num modo de fugir da vida.» Muito recentemente, no lançamento do último álbum, proclamou alto e bom som: «I’m ready, my Lord». Assim deu forma de oração ao que desabafara ao longo dos anos, em momentos alegres, outros tristes (muitos), quase todos nostálgicos, embora festivos como um gentleman. Uma das composições mais cristalinas na mensagem, datada de 1984, é o conhecido Hallelujah, aqui antecedido pela letra:

«Hallelujah

Now I’ve heard there was a secret chord
That David played, and it pleased the Lord
But you don’t really care for music, do you?
It goes like this
The fourth, the fifth
The minor fall, the major lift
The baffled king composing Hallelujah


Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Your faith was strong but you needed proof
You saw her bathing on the roof
Her beauty and the moonlight overthrew you
She tied you to a kitchen chair
She broke your throne, and she cut your hair
And from your lips she drew the Hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

You say I took the name in vain
I don’t even know the name
But if I did, well really, what’s it to you?
There’s a blaze of light
In every word
It doesn’t matter which you heard
The holy or the broken Hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

I did my best, it wasn’t much
I couldn’t feel, so I tried to touch
I’ve told the truth, I didn’t come to fool you
And even though it all went wrong
I’ll stand before the Lord of Song
With nothing on my tongue but Hallelujah

Hallelujah, hallelujah, …»

Um caminhante no tempo, Cohen soube dar voz e preencher de música os pensamentos mais bonitos. Vivera em pleno, pelo que estava preparado para partir! Inclusive, antevira o Momentum, há mais de 30 anos, fixando-o no verso final de Hallelujah. Só nós fomos logo acometidos de um ataque de saudades. Ainda bem que a sua voz rouca e quente sobrevive em 14 álbuns.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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 (1)  O site oficial do artista canadiano: https://www.leonardcohen.com/ .

(2)   Mais letras e vídeos estão compactados num artigo do Observador: http://observador.pt/2016/11/11/10-poemas-10-cancoes-palavra-de-cohen/ .

(3)   Site oficial do Chelsea: http://www.hotelchelsea.com/ .


Escadaria interior do hotel

O saguão – foyer

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei deste post, uma simpática homenagem ao poeta cantor do silêncio que no silêncio se encontra, continuando a inspirar-nos com os seus muito (re)buscados e ressonantes poemas.

Anónimo disse...

São isso mesmo: "ressonantes poemas". Obrigada, MZ

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