Aos 82, Leonard Cohen(1) deixou
um legado maravilhoso de poesia vivida e cantada, experiências de vida entre
banhos de multidão e anos de reclusão. Ora numa ilha grega, ora num mosteiro budista na Califórnia (durante cinco anos), ora pelos palcos do mundo para cantar com os fãs,
de preferência ao luar. Nos concertos era generoso, com actuações de duas a
três horas, de fazer inveja aos mais novos e robustos. Ele, ao contrário,
mantinha-se franzino e sóbrio, de ar ascético. Entrava em palco de chapéu, fato
e gravata, como se fosse para um jantar à luz das velas. Educadíssimo, tratava
o público como convidados de casa em dia de festa. Por isso eram tão
indefiníveis os seus concertos, conseguindo um tom intimista, cerimonioso e, simultaneamente,
caloroso e sincero, como um senhor. De olhar directo e límpido, irradiava uma
ternura contagiante.
Percebe-se que a poesia
veio antes da música, pois já andava pelos 30 quando decidiu dedicar-se à segunda.
Nascido em 1956, em Montreal, herdou da família judia, de origem polaca, uma fé
viva, incansavelmente dialogante e ávida de mais horizonte. A sua arte –
literária e musical – alcançou uma dimensão transcendente, a rondar a
eternidade, a transbordar de uma espiritualidade estilizada, que procura o Belo.
Bem que teria honrado o Nobel poder incluí-lo no friso dos premiados. Chamaram-lhe:
the monk, o último dos românticos, o eterno
insatisfeito, o visionário, o poeta do rock n' rol, mas tudo ficou
aquém de Cohen, que se limitou a ser ele
próprio – curiosamente, replicando a singularidade de outros artistas de raízes
judaicas.
Nas letras, o primeiro mestre
foi García Lorca. Depois, deixou que fosse a própria vida, com muitos encontros
e desencontros. Quem teve a sorte de se cruzar com Leonard recorda histórias divertidas
de um homem simples, inteligente, profundo, cheio de humor, lúcido e sem tiques
de vedeta. Daquela humildade pura, que volta a resultar revolucionária de tão
rara em que se tornou. Numa das estadias em Portugal, recusou a suite que lhe
tinham reservado, mudando-se para um quarto igual ao dos outros. Noutra, a
minutos de começar o concerto, no pavilhão de Cascais, descobriram-no a fazer o
pino num ginásio contíguo. Anedótico: de pernas para o ar, já de fato e gravata
e com bastante idade, enquanto o recheio dos bolsos se espalhava pelo chão com algum
estardalhaço. Rindo-se da situação, pôs-se calmamente de pé. Nele, mesmo as
acrobacias inesperadas saíam-lhe com naturalidade.
Seguem três músicas
talvez menos badaladas, que explicam bem a mística de Cohen. A primeira, «In my secret life». A segunda, um dueto
muito conseguido com Sharon Robinson. A terceira, uma homenagem à mítica cantora de blues e souls – Janis
Joplin – dois anos depois de esta ter morrido de overdose, com apenas 27 anos, num vídeo com imagens aos recantos
aconchegantes do Hotel Chelsea de Nova Iorque, que foi residência de
inúmeros artistas, incluindo do próprio Cohen, de Edith Piaf, Dylan, Joplin,
Frida Khalo e Diego Rivera, Cartier-Bresson, Andy Wharhol. Também ali foi
escrito «2001: Odisseia no espaço»,
por Arthur C. Clarke.
Muitos artigos
interessantes inundaram os jornais e os blogs, desde que a sua morte foi
anunciada, a 7 de Novembro. Alguns dos testemunhos(2), que ajudam a
descobrir a personalidade riquíssima de Leonard C., são da autoria de João
Miguel Tavares e de Miguel Esteves Cardoso, seguindo um
mini-aperitivo de um e de outro:
«Chorei como se tivesse morrido alguém da minha família, porque Leonard Cohen é da minha família. Demasiado importante, demasiado próximo, demasiado meu. É esse o dom dos génios: estabelecem relações íntimas com milhões de pessoas. (…) em mais ninguém encontrei tamanha capacidade de iluminar o interior das coisas e das pessoas, traduzindo por palavras o que não sabíamos sentir. Não há outro a quem possa dizer: “Dá-me só mais um verso, Leonard, e eu serei salvo.” Chamar-lhe músico ou poeta é ficar aquém. Era um profeta que nos falava das únicas duas coisas que realmente importam na vida: Deus e o amor. (…)
A razão porque nos sentimos sempre demasiado novos ao lado de Leonard Cohen
é porque ele pareceu sempre demasiado velho. Já esteve lá, já leu, já viu, já
viveu, já bebeu, já fumou, já sofreu, já meditou – sempre vários anos à nossa
frente. Mas não em distância. Em profundidade. (…) Em
Going Home, fala das aspirações de um certo “Leonard”, e diz: “He wants to
write a love song/ An anthem of forgiving/ A manual for living with defeat.” Cohen não nos ensina o caminho – ele consola-nos o caminhar.»
João Miguel
Tavares, transcrito de:
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«Passámos
um fim-de-semana juntos em que me fizeste esquecer que eras o meu herói. Quando
acabou fiquei com dois heróis: com o Leonard Cohen das canções e com o Leonard
Cohen em carne e osso. Embebedámo-nos com Bloody Marys e, a certa altura, tu reparaste
que eu tinha a mania de desdizer o que tinha acabado de dizer. Eu disse-te que
era um tique português. Primeiro afirma-se um disparate ou uma verdade. Depois continua-se “E, no entanto…”
“And yet!”, gritaste, “the two greatest words in any language!” (…)
Agora morreste e obrigas-me a escrever estas palavras lavadas em lágrimas.
AND YET… E, no entanto, tiveste uma vida feliz. Fizeste o que querias. Amaste e
foste amado. Trabalhaste nas canções mais bonitas e elevadas do nosso tempo. Já
há mais de 60 anos que andaste a falar com Deus, a preparar o teu caminho.
Foste um pecador de primeira AND YET… E, no entanto, algo me diz que vais ser
muito bem recebido no reino dos céus, se for para aí que combinaste ir. (…)
Toda a vida dançaste com Deus e com a morte (…) Hoje de manhã, quando ouvi
You Want It Darker, como faço todas as manhãs desde que saiu o álbum, pensei
que ia chorar, por ser a primeira vez que o ouvi sabendo que estavas morto. Mas
não chorei. As canções fizeram o que
sempre fizeram: encheram-me de força, abriram-me ao medo e à beleza de estar
vivo. Adeus, Leonard Cohen, dizemos nós como se não soubéssemos que já lá
estás.»
Miguel Esteves
Cardoso, transcrito de:
A Partida definitiva não
intimidava Cohen, que pareceu encarar a existência segundo um dito de Saramago:
«Fugir da morte pode tornar-se num modo
de fugir da vida.» Muito recentemente, no lançamento do último álbum, proclamou
alto e bom som: «I’m ready, my Lord».
Assim deu forma de oração ao que desabafara ao longo dos anos, em momentos
alegres, outros tristes (muitos), quase todos nostálgicos, embora festivos como
um gentleman. Uma das composições mais cristalinas na mensagem, datada de 1984,
é o conhecido Hallelujah, aqui antecedido
pela letra:
«Hallelujah
Now I’ve heard there was a secret chord
That David played, and it pleased the Lord
But you don’t really care for music, do you?
It goes like this
The fourth, the fifth
The minor fall, the major lift
The baffled king composing Hallelujah
That David played, and it pleased the Lord
But you don’t really care for music, do you?
It goes like this
The fourth, the fifth
The minor fall, the major lift
The baffled king composing Hallelujah
Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah
Your faith was strong but you needed proof
You saw her bathing on the roof
Her beauty and the moonlight overthrew you
She tied you to a kitchen chair
She broke your throne, and she cut your hair
And from your lips she drew the Hallelujah
Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah
You say I took the name in vain
I don’t even know the name
But if I did, well really, what’s it to you?
There’s a blaze of light
In every word
It doesn’t matter which you heard
The holy or the broken Hallelujah
Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah
I did my best, it wasn’t much
I couldn’t feel, so I tried to touch
I’ve told the truth, I didn’t come to fool you
And even though it all went wrong
I’ll stand before the Lord of Song
With nothing on my tongue but Hallelujah
Hallelujah, hallelujah, …»
Um caminhante no tempo, Cohen
soube dar voz e preencher de música os pensamentos mais bonitos. Vivera em pleno,
pelo que estava preparado para partir! Inclusive, antevira o Momentum, há mais
de 30 anos, fixando-o no verso final de Hallelujah.
Só nós fomos logo acometidos de um ataque de saudades. Ainda bem que a sua voz
rouca e quente sobrevive em 14 álbuns.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) O site oficial do artista canadiano: https://www.leonardcohen.com/ .
(2) Mais letras e vídeos estão
compactados num artigo do Observador: http://observador.pt/2016/11/11/10-poemas-10-cancoes-palavra-de-cohen/
.
(3) Site
oficial do Chelsea: http://www.hotelchelsea.com/
.
Escadaria interior do hotel |
O saguão – foyer |
2 comentários:
Gostei deste post, uma simpática homenagem ao poeta cantor do silêncio que no silêncio se encontra, continuando a inspirar-nos com os seus muito (re)buscados e ressonantes poemas.
São isso mesmo: "ressonantes poemas". Obrigada, MZ
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