22 fevereiro 2017

Do S. Carlos (ou também uma espécie de Duas Últimas)

Dava-se a Lucia em beneficio, com a segunda dama. Os Cohens não tinham vindo - nem o Ega. Muitos camarotes estavam desertos, em toda a tristeza do seu velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com um bafo de sudoeste, parecia penetrar ali, derramando o seu pesadume, a morna sensação da sua humidade. Nas cadeiras, vazias, havia uma mulher solitária, vestida de cetim claro; Edgardo e Lucia desafinavam; o gás dormia, e os arcos das rebecas, sobre as cordas, pareciam ir adormecendo também.

- Isto está lúgubre, disse Carlos ao amigo Cruges, que ocupava o escuro da frisa.

Cruges, amodorroado num acesso de spleen, com o cotovelo sobre as costas da cadeira, os dedos por entre a cabeleira, todo ele embrulhado em crepes sobrepostos de melancolia, respondeu, como do fundo dum sepulcro:

- Pesadote.

***

Voltei ao S. Carlos para ouvir uma ópera. Há um lado qualquer ridículo em mim, talvez de queirosiano de sempre, ou apenas de pessoa deslocada no tempo, que se encanta (impressiona talvez seja demais) com uma ida a esta sala específica - mas para ouvir ópera, note-se. Nos últimos dois anos convidaram-me para ir a S. Carlos ouvir outras peças. O repertório, interessante e bonito era, de uma das vezes, a Sinfonia Novo Mundo, de Dvorak, uma obra de que gosto muito e à qual, como já aqui escrevi uma vez, atribuo uma interpretação errada, porém mais interessante do que a real... Contudo, tenho de confessar - em S. Carlos é ópera.   

S. Carlos constitui-se, nestes dias de espectáculo aberto ao público, como um enclave perdido entre o passado e o presente, como se lhe faltasse uma directiva, uma instrução, uma norma que resolvesse um problema claro, ou respondesse de forma inequívoca a uma pergunta singela: onde me situo eu? Não há metafísica na inquirição - apenas um problema de dress code. Atrás de mim havia gente de gravata, à minha frente gente de calças de ganga. Viam-se senhoras arranjadas, senhoras mais à vontade. Eu próprio era o espelho desta indecisão, desta indefinição que transforma uma travessa bonita, onde se deitam umas perdizes, num recipiente remediado, onde se coloca uma chicharro. Fui de casaco, sem gravata - tentei apenas ser civilizado, não consegui ser nada.

Sou defensor do dress code em S. Carlos, mesmo que isso me obrigasse a apertar o pescoço com uma faixa de fantasia, porque esta sala requer uma boa estética - ainda que com um ouvido deficiente. Sei que ninguém ousará esse fervor determinativo, porque não é democrático, talvez seja elitista e o S. Carlos, como a cultura, o belcanto, o ar, a praia e os aviões, é de todos. E no entanto, ir a S. Carlos não é ir ao Meo Arena, por mais respeito que tenha por esse recinto onde nunca fui. Ir a S. Carlos, insisto, é uma atitude, não um destino. É - ou tem de ser - um prazer auditivo e visualmente estético, que exige moldura a condizer;

(infelizmente é perceber também, pelos piores motivos, que não houve evolução ao nível das cadeiras, algo que nos rebenta as costas e nos faz solicitar osteopatas...)

Por fim, pelo menos para alguns, é imaginar o Carlos da Maia a perseguir a Gouvarinho com o olhar, ou, da sua frisa elegante, lamentar a sua ausência. É, nalguns casos (e não foi este) plagiar o Cruges e, à pergunta sobre como foi a noite, responder com um ar sombrio: pesadote... Mas até o advérbio requer uma elegância que se não compadece com um casaco de cabedal por cima de uma camisa de manga curta. A linguagem, em determinados casos, não é apenas oral, mas cénica.

Deixo-vos, pelo segundo dia consecutivo, com ópera - neste caso com a ária mais bonita da obra que fui ver, e onde se prova que a infância, as memórias, são o refúgio que sempre escolhemos em momentos de aflição. E se aquele momento era de aflição para a segunda mulher de Henrique VIII, um homem ainda imberbe naquela sua voragem casamenteira...

JdB



Lyrics & English Translation

ANNA
Are you weeping?
What causes such tears?
This is my wedding day.
The King awaits me...
the candles on the altar, are lit,
it is decorated with flowers.
Give me quickly my
white robe; adorn my hair
with my crown or roses.
That Percy know nothing about it,
the King has ordered it so.

CORO
Oh tragic memory!

ANNA
Oh..who is grieving?
Who spoke of Percy?
Let me not see him;
let me hide myself from his
gaze. It is useless... He comes...
he accuses me... he scolds me...
ah! he scolds me, accuses me.
Ah!

Ah! forgive me, forgive me...
I am unhappy.
Take me away from
this utter misery
Are you smiling?
Oh joy!
Do not let me die abandoned here, no.
You are smiling? Percy?
Oh joy!

Lead me to the dear castle
where I was born,
to the green plane trees,
to that brook that still
murmurs to our sighs...
Ah!
there I forget Past griefs;
give me back one day of my youth,
give me back one day of our love.

Lead me to the dear castle
where I was born;
give me back one day
of our love..
just one single day of our love.

1 comentário:

Anónimo disse...

Desde que me conheço que sou um "desgravatado", o que não me impede de ser um defensor do dress code. Se há uma maneira de vestir para ir à praia, a um casamento ou montar a cavalo, também devia haver regras para ir a S. Carlos e não seriam, certamente, sem gravata e de blue jeans.

SdB(I)

Acerca de mim

Arquivo do blogue