31 agosto 2017

Vai um gin do Peter’s? 

Sem pretender ser um documentário rigoroso, o último filme de Christopher Nolan, «DUNKIRK»(1), transporta-nos para a realidade cruenta e incompreensível da guerra, na situação terrível do soldado comum. Atirado, à força, para uma espiral de violência insaciável, sente-se peça menor de um jogo de sobrevivência ilógico, onde parece valer tudo para salvar a pele. Nesse contexto feroz, onde a humanidade resvala para um estádio algo animalesco, rareiam os comportamentos nobres, que não cedem à tentação mais primitiva de sobreviver a qualquer preço.

No terreno, a guerra resulta horrivelmente assustadora e difícil de entender.

Em «DUNKIRK», a diversidade de matizes humanos desfila no ecrã sob a pressão crescente da portentosa ofensiva nazi, conferindo heroísmo aos gestos íntegros e generosos. Ora, o cerco inimigo adensa-se continuamente. No mar, em terra e no ar, os regimentos aliados dificilmente escapam aos ataques alemães, que aguardam a partida das embarcações, pejadas de soldados, para as alvejar selvaticamente. Estoiram pelos ares pedaços de corpos desfeitos e de material estilhaçado; morrem calcinados os que são devorados pelas chamas do combustível derramado pelos navios atingidos; outros afundam-se, aprisionados na carcaça do barco tornado mortalha de miúdos amedrontados e de voluntárias bondosas; alguns aviadores, mais bafejados pela sorte, sobrevivem à amaragem e ainda acabam resgatados por barcos ingleses. Por junto, o fundo do Atlântico e o areal francês transfiguraram-se em vala comum de gente nova assassinada à toa. 

Os sons específicos do palco de guerra dominam ao longo do filme, com parcos diálogos. As expressões faciais e as próprias circunstâncias prevalecem sobre as palavras. No fundo, a proximidade aflitiva de uma morte violenta é a presença mais gritante. 


Um massacre infligido aos aliados que, só não teve consequências mais funestas, por os alemães terem, a dada altura, abrandado os bombardeamentos, acredita-se que por acharem possível poder assim negociar melhor uma rendição serena com o Reino Unido, como vieram a conseguir com os franceses, ou a prioridade de Hitler tomar Paris para humilhar maximamente os aliados. 
Aquele cenário dantesco evoca, por aproximação, a histórica «Retirada de Dunquerque» (22 de Maio a 4 de Junho de 1940), na tentativa de fazer regressar ao Reino Unido o contingente aliado – composto por britânicos, franceses, belgas, canadianos e holandeses. No avanço triunfante dos panzers do Reich, no Norte de França, tinham ficado encurralados num pequeno enclave portuário, sofrendo baixas homéricas. Os números são clamorosos: 48 mil mortos do lado francês, 68 mil do lado britânico, um milhar de civis, 200 navios, 9 contratorpedeiros. Do lado nazi, os mortos oscilam entre 20 mil e 30 mil, mais 100 tanques e 132 aviões. Para conter a sangria, os aliados lançaram-se logo na organização da fuga das tropas para o lado seguro do Canal da Mancha, cognominada de «Operação Dynamo», num repatriamento sem precedentes.

No filme, os britânicos têm a exclusividade do embarque, deixando para trás os regimentos maioritariamente de França, heroicos a retardar a conquista de Dunquerque, esquina-a-esquina, para viabilizar a retirada. Alguns franceses ainda tentam embarcar mas, na obra de Nolan, vêem-se tratados como soldados de segunda e poucos resistem à discriminação grotesca do principal aliado. 

No extenso areal gaulês, as filas ordeiras de soldados imberbes estão expostas à caprichosa Luftwaffe, vagamente contrariada por os poucos caças da RAF autorizados a proteger as manobras de evacuação. A dificuldade dos que esperam o regresso é extrema, pois Churchill queria poupar o escol da marinha de guerra e da Royal Air Force para o iminente ataque de Hitler às ilhas Britânicas. Fora traumatizante ver mais um dos grandes contratorpedeiros ser destruído pelos nazis, minutos depois de levantar ferro, carregado de passageiros. Aqueles pobres soldados, além de estarem sujeitos a um repatriamento atribulado e incerto, não eram a prioridade, pois havia a noção de que se atravessava uma etapa incipiente da guerra. De facto, até 1945, o inferno experimentado na desastrosa Batalha de Dunquerque multiplicou-se dramaticamente. 

Em substituição da marinha do Império, mobilizou-se a frota naval civil para se aventurarem por um Canal da Mancha repleto de submarinos inimigos e céus controlados por aviões alemães. Pior era difícil. Em vésperas das filmagens, o próprio realizador quis replicar aquela travessia marítima, que durou umas penosas dezanove horas, mesmo sem o risco adicional dos bombardeamentos. Recuando a 1940, impressionou – na História e no filme – a excelente adesão dos pequenos iates de recreio, barcos de pesca e botes de todas as dimensões! Nem hesitaram em responder à temerária convocatória de Churchill, pelo que o número de repatriados excedeu largamente o esperado! Até o optimismo de Winston C. ficou aquém da realidade, atingindo-se uma discrepância comovente de 340 mil evacuados, quando as previsões situavam a fasquia em pouco mais de 45 mil. Era a única boa notícia de um massacre e recuo humilhantes, ao tentar conter o imparável exército do Führer. Por isso, os ingleses trataram de a festejar com pompa e circunstância, cientes do valoroso apoio dado e empenhados em manter alto o espírito patriótico, sempre útil para reforçar a combatividade geral. 

Fotografia de arquivo: resgate de militares britânicos por barco pesqueiro, após o afundamento do navio atacado nas redondezas de Dunquerque.
No ecrã, vemos o mais graduado da marinha, na interpretação sempre elegante de Kenneth Branagh, emocionar-se ao vislumbrar pelos binóculos, as águas que banhavam Dunquerque pontuadas por minúsculas embarcações com a Union Jack. A esclarecer o outro oficial do exército, que se espantara com a sua interjeição emotiva, explica-lhe que, desta vez, não se tratava de nova ameaça nazi (como o outro temera), mas a «pátria a aproximar-se». Precisamente, na hora mais amarga de uma retirada precária e anti-épica, emergia o melhor de um país aguerrido, materializado numa mobilização fantástica dos civis para uma evacuação de alto risco. 

Na trama do filme entrelaçam-se três situações distintas, focadas nas forças britânicas. Os desfechos são convergentes e despidos de glória, para espelhar a força indomável de um povo anónimo disposto a lutar até ao último respiro, sem espalhafato nem vedetismos. Era o corolário perfeito de uma escolha consumada pessoa-a-pessoa. Nas três também se adivinham perdas incríveis e instantes de hesitação num ou noutro combatente. Uma das histórias decorre em terra, entre o local do embarque e as ruas da povoação portuária. Outra no Atlântico, a acompanhar a bravura de um pequeno iate, cujo skipper perdera um filho da RAF nos primeiros dias de guerra. O desgosto incentivara-o a enfrentar perigos maiores no agitado Canal, para dar continuidade à luta de que o filho fora brutalmente apartado. A terceira vive-se nos ares, no combate encarniçado com a Luftwaffe.    

Fotografia de arquivo publicada no Observador, a mostrar a organização primorosa dos militares, ao longo do areal. 
Bem à inglesa, o herói entronizado não provém dos líderes, nem das elites instituídas, porque se prefere o cidadão comum, crucial numa guerra total, que transfere os focos de batalha para as cidades, os campos e os mares do planeta. As homenagens principiaram no soldado raso, que voltava à pátria cabisbaixo pelo pouco que fizera numa praia deserta, onde se limitara a escapar às balas alemãs. Demasiado inglório. Por isso, estranharam serem aclamados, no desembarque, pois valorizava-se a sua resistência à carnificina nazi. Às incontáveis embarcações civis, que tinham multiplicado travessias arriscadas para salvar mais um, nem havia palavras para agradecer. Às tripulações de salvamento – a incluir mulheres civis, incumbidas da distribuição de cobertores, chá e sanduiches aos militares esgotados – também faltavam palavras de gratidão. Para a pequena equipa de oficiais, chamada a gerir a grande Retirada, voltavam a faltar palavras. Para a população que ficara em casa, a preparar a iminente Batalha de Inglaterra, importava celebrar a chegada dos militares e manter elevado o ânimo geral. A maioria respondera de modo exemplar, superando até as expectativas, individuais e comunitárias, como «DUNKIRK» se empenha em mostrar. Esse terá sido o maior «milagre», segundo a expressão enfática que Churchill quis atribuir a Dunquerque, apesar de não ser crente. 

Terminada a Operação Dynamo, coube ao talento oratório de Churchill condensar o espírito com que entraria para os anais uma retirada colossal que muitos teriam considerado mera derrota. No discurso de 4 de Junho, depois de reconhecer que as «Guerras não são vencidas com evacuações», confirmou o seu propósito de luta intrépida até à libertação da Europa ocupada pelo  jugo nazi: «We shall go on to the end. We shall fight in France, we shall fight on the seas and oceans, we shall fight with growing confidence and growing strength in the air, we shall defend our island, whatever the cost may be. We shall fight on the beaches, we shall fight on the landing grounds, we shall fight in the fields and in the streets, we shall fight in the hills; we shall never surrender (…)». São das últimas palavras de uma obra, que pretende homenagear o esforço de guerra britânico, incluindo pequenas notas críticas (menores) sobre a falta de solidariedade com o aliado francês. Num efeito compensatório, assistimos à declaração heroica do oficial encarnado por K.Brannagh, que declina a possibilidade de embarcar no último bote de repatriamento, explicando que ficaria em terra por causa dos franceses. Agora, ao serviço da Gália. Mas tratou-se de um acto isolado. 

Marcante nas cenas finais, em ritmo empolgante até à conclusão, é a multiplicidade de cambiantes da galhardia inglesa, que ressalta no meio de um revés tremendo, impregnando de um certo sentido vitorioso uma facção apenas derrotada em termos estritamente bélicos (talvez paradoxal, mas só na formulação). É nesta senda que surge o combate solitário do oficial da RAF contra toda a Luftwaffe que fustigava os sitiados britânicos, preferindo esgotar o combustível do caça na defesa dos seus compatriotas. Ser feito prisioneiro, à vista do espectador, depois da aterragem no areal que os nazis já controlavam, só realça o heroísmo silencioso do grande aviador, cabendo-nos lugar privilegiado entre as pouquíssimas testemunhas daquele feito. 

Toda a trama de «DUNKIRK» conta connosco para guardar memória da pequena história urdida na zona cega e muda dos grandes feitos da História, fazendo jus a gestos extraordinários de uma maioria sem possibilidade de figurar nos manuais, mas que contribuiu decisivamente para o derrube do Terceiro Reich.    
      
      
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)

(1) FICHA TÉCNICA
Título original: DUNKIRK
Título traduzido em Portugal: DUNKIRK
Realização: Christopher Nolan
Argumento: Christopher Nolan
Fotografia: Hoyte van Hoytema
Banda Sonora: Hans Zimmer
Duração: 106  min.
Ano: 2017
Países: Reino Unido, EUA, França e Holanda
Elenco: Kenneth Branagh (Comandante Bolton), Mark Rylance (Mr.Dawson, skipper de barco de recreio), Fionn Whitehead (soldado Tommy), Damien Bonnard (soldado francês), Harry Styles (Alex), Tom Hardy (Farrier), etc. 

Local das filmagens: Norte de França
Trailer:

1 comentário:

Anónimo disse...

Maria Zarco,
Vexa é uma pessoa capaz. Depreeendo isto da leitura dos seus «Gins».
Gostaria que aceitasse uma divergência: a guerra é um acontecimento 'velho como a humanidade'.
Como disse Karl von Clausewitz: A guerra não é mais do que a continuação da política misturando-lhe outros meios.
A crueldade da guerra é-lhe particular. Não podemos dizer que uns são bons e que os seus inimigos são maus. Todos são maus.
Mas... «ai dos vencidos».

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