29 agosto 2017

Duas Últimas

Se a chuva ocasional de ontem, forte e intensa, foi para uns momento de neurastenia, a mim-me deixou prenúncios benfazejos, ainda que prematuros, de Outono.  De janela aberta, a meio da manhã, cheirei o cheiro da terra molhada e imaginei, ingenuamente, o mercúrio do termómetro a descer, os dias a encurtar, a necessidade de resguardo. Sei que será chuva de pouca dura, que Setembro pode ser um bom mês para quem ainda ambiciona praia e dias ao sol.

Ontem, numa conversa breve, uma amiga dizia-me que gostava do Outono porque os dias curtos demoravam menos tempo a passar. São motivos diferentes os que me levam a apreciar esta época do ano: o Outono, tal como a música mais triste (e já aqui falei sobre isto) é centrípeto, convida ao recolhimento, à interiorização das ideias, à descoberta do sentido das coisas, à protecção que se encontra em locais familiares. Talvez, num certo sentido, seja uma estação do ano mais segura (importante?), porque mais propícia a decisões sérias. Para quem faz do regresso a casa um tema fulcral nas suas deambulações metafísicas, o Outono tem de ser uma presença - talvez mesmo uma dominância. 

Deixo-vos com um conjunto bonito de aspectos estéticos: Monserrate, a viola de Pedro Jóia, a voz de Ricardo Ribeiro e, não menos importante, uns belíssimos versos de Pedro Homem de Mello. 

Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu.

JdB  




Entrega

Descalço venho dos confins da infância
Que a minha infância ainda não morreu.
Atrás de mim em face ainda há distância
Menino Deus, Jesus da minha infância,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu

Venho da estranha noite dos poetas,
Noite em que o mundo nunca me entendeu
Vê trago as mãos vazias dos poetas.
Menino Deus, amigo dos poetas,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu

Feriu-me um dardo, ensanguentei as ruas
Onde o demónio em vão me apareceu.
Porque as estrelas todas eram suas
Menino irmão dos que erram pelas ruas
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu

Quem te ignorar ignora os que são tristes
Ó meu irmão Jesus, triste como eu
Ó meu irmão, menino de olhos tristes,
Nada mais tenho além dos olhos tristes
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu!

Pedro Homem de Mello

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