23 agosto 2017

Whispering Grass *

Por Harare inteiro, sobretudo nos subúrbios, onde há vegetação, se sente o cheiro da terra queimada. Adormeço, muitas vezes com esse odor que me entra suavemente pelo quarto adentro. Traz-me à memória vaga o encanto de uma lareira, onde as chamas são sempre diferentes, onde os nossos olhos se perdem horas infindas enquanto a mente devaneia por outros lugares. É um cheiro que não me cansa, não me sufoca, se entranha mansamente nas minhas rotinas diárias.

Um dia, movido pela curiosidade que sempre entusiasma alguns ignorantes, perguntei a uma rapariga de cá o verdadeiro motivo das queimadas. Respondeu-me mencionando a renovação da terra, a necessidade de a tornar mais fértil, o carácter purificador e regenerador do fogo. No fundo, disse-me, to make a new green grass grow.

Há uma ou duas semanas troquei mensagens assertivas com pessoas de quem me sinto muito amigo. Algumas palavras tiveram contornos de dureza – não aquela que se serve de objectos de arremesso, mas a que nos faz olhar o outro nos olhos e verbalizar a franqueza, a diferença, o desacordo, a vontade de reparação, a certeza do seguir viagem. No fundo, fizemos uma queimada, porque a terra se regenerou, esfumando-se os vestígios do desalinhamento de pensamentos na cinza que a brisa levou. Cresceu uma nova green grass na maneira como nos relacionamos.

Lembrei-me então de uma toada lindíssima, chamada Whispering Grass, interpretada pela voz não menos bonita da Sandy Denny.


Why do you whisper, green grass
Why tell the trees what ain't so?
Whispering grass
The trees don't have to know
Why tell them all your secrets
Who kissed there long ago?
Whispering grass
The trees don't need to know



Numa cena de uma versão do filme Orgulho e Preconceito, que também  "usa" esta música, há olhares que se cruzam, que se perdem, mãos que se entrelaçam e se afastam, encontros e desencontros de duas pessoas entre varandas, salões, danças inacabadas, beijos interrompidos. O verdadeiro encanto das coisas está na possibilidade que nos oferece de uma visão muito única, muito nossa. Uma cena que é uma bonita metáfora para a vida.

JdB

* Repescado de um texto escrito originalmente em 21.08.2008

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue