04 novembro 2017

Carta a um anjo

Foi hoje, mas há dezasseis anos. 

Cedo a palavra, porque nunca foste minha, mas de todos os que te quiseram e que fizeram caminho connosco..

J

***

O anjo e as estrelas

- Não é não adormecer bem, mas está muito acordado durante a noite e às vezes conversa sozinho, é muito estranho.

- O ritual do meu filho antes de dormir, Doutora? Acha relevante? Então eu conto-lhe...

Tenho uma vida comum, vivo num terceiro andar, igual a qualquer outro. Tenho um marido, um filho e uma cadeira gasta no quarto do bebé, onde me sento.

O meu marido e o meu filho têm um ritual todas as noites desde que ele nasceu. Enquanto eu fico sentada a olhar, o meu marido passeia com o meu filho pelo quarto enquanto lhe afaga o cabelo, beija as bochechas encarnadas e lhe aperta os refegos como quem quer agarrar o amor com as mãos.

Vão à janela, e ele ensina ao filho o nome das estrelas, as constelações, os caminhos misteriosos da ursa maior, que o sol é a única estrela que não pertence a uma constelação - eu vou-me rindo, em parte pelo amor infinito que sinto ao ver aqueles momentos, e em parte porque ele não acerta o nome de nenhuma constelação, nem percebe nada de estrelas. Nunca o corrigi, não interessa, na verdade. O momento que eles têm os dois é muito mais importante do que o rigor das informações.

Sempre fui excluída daqueles momentos; não que me tivessem excluído, mas sempre me soube melhor ver aquele filme ternurento passar à minha frente...sinto uma paz que não consigo descrever, acho que ultrapassa o conceito da ciência, Doutora. Sentava-me na cadeira gasta, e via-os, dia após dia. O meu filho ia crescendo e o meu marido continuava sem acertar o nome das constelações.

Antes de dormir e no meio das explicações nas estrelas, vão dizendo boa noite aos objectos que enfeitam o quarto do meu filho: ao Santo António pendurado em cima da cómoda desarrumada, à estrela azul que ilumina o quarto, à girafa do quadro e a um anjo a que chamaram Madalena, com uma cara sorridente e com um grande laço em cima de uma nuvem. Todos os dias é igual, doutora, repetem as mesmas frases, o nome errado das estrelas, dizem boa noite aos mesmos objectos.

- Boa noite Santo António, boa noite girafa, boa noite estrela, boa noite anjo Madalena.

Os meses foram passando e há certas noites em que o meu filho fala sozinho a a horas tardias; fala, fala, fala. Uns dias melhor, outros dias pior. Uns dias fala mais, outros fala menos. A doutora acredita que até já ouvi o meu filho a rir às gargalhadas, ainda o sol não tinha nascido?

Desde há uns tempos para cá, tem piorado - cada vez está mais acordado a meio da noite e cada vez fala mais. 

Tentei ignorar mas já não tive força - e confesso que tinha alguma curiosidade. Um dia destes, eram quatro da manhã, lá estava ele na sua conversa habitual. 

Devagarinho fui ao quarto dele e encontrei-o sentado a gesticular com as suas mãozinhas sapudas. Deitei-o e ele adormeceu.

No dia a seguir, a mesma história repetiu-se. Dei com ele a apontar para a janela e a rir entre palavras entremeladas. 

Já estava angustiada por não dormir e por não saber o que eram aquelas conversas incompreensíveis, entrei outra vez no quarto dele e disse:

- Vai dormir, é tarde. Os meninos a esta hora estão todos a dormir. 

Ele abanou a cabeça: Não quero dormir, mãe.

- Tens de dormir, bebé - com quem falas tu a esta hora da noite e por que razão te ris tanto?

- Com o anjo Madalena - acho que ela também não quer dormir hoje. Agora está a ensinar-me os nome certo das estrelas, o pai engana-se sempre e faz-nos rir. Vai dormir mãe, está tudo bem.

T(dB)

em nome de todos os que te lembram, de ti têm saudades, que te deram a mão à chegada ou à partida, para ti sorriram ou por ti choraram.

6 comentários:

Anónimo disse...

Tão bonito e tão forte.

Para ler, reler e dar a ler muitas vezes.

Um bj para si e abrs para toda a família.

fq

ACC disse...

Que ternura, que docura, que beleza de momento.
ACC

Anónimo disse...

Fui médico. Agora sou Licenciado em Medicina. Fui médico de pessoas e nunca de 'exames'.
O diagnóstico e o tratamento vivem do sermos pessoas que querem ajudar outras pessoas. Não é difícil. Basta querer.

Portanto, com todo o respeito, após ler este texto tão sentido, tão humano, tão de Mãe, fiquei com a 'quase certeza', de que o tinham perdido deste mundo.
Sei que não há pior dor da que de uma Mãe que perde um filho, ou uma filha. A dor do Pai será semelhante, mas nunca a igualará.

Será conto? O vosso site tem uns contos notáveis.
Será vero? Se foi vero, sabeis, como eu, que ele passeará entre as estrelas, tratando-as por tu. Que sorri para vós, a sua Mãe e o Pai (sem veia para astrónomo).

Deus estará sempre convosco, mesmo para além deste mundo.

eao

JdB disse...

Anónimo:

Agradeço a sua repetida visita. Se é visita de médico não dou por isso. Demorou-se a ler e fez gosto em comentar. Não se pode pedir mais.
Perdemos o anjo Madalena hoje, mas há dezasseis anos. Sou pai, percebo bem a diferença de dores de que fala. E concordo consigo.
O texto foi escrito por uma mãe, que é também minha filha, sobre o filho dela, que é meu neto. O que é verdade e fantasia só ela sabe. E o anjo Madalena, é claro, que sabe tudo, sobre todos. Passeia--se pelas estrelas, salta no colo de Nossa Senhora, olha para nós e protege-nos. Se estivéssemos mais atentos ao Céu, onde anda o anjo, saberíamos mais. Não só os nomes das estrelas, mas o segredo da santidade.

Volte sempre.

JdB

Anónimo disse...

Jdb,
Obrigado.
eao

Anónimo disse...

Um abraço "especialmente especial", ao JdB e à T(dB).

gi.

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