* publicado originalmente a 15 de Outubro de 2010. Porque re-publico este post tão cedo? Porque ontem vi o último episódio de Os Últimos Czares, aquele que mostra a barbárie do assassinato, a sangue frio, de uma família inteira - pai, mãe e quatro filhos que não mereceram aquele fim. Ninguém merece aquele fim, por mais desastrado, incompetente e impiedoso que tenha sido. Na verdade a música russa fez o povo russo.
Uma leitura mais arrojada da história da música suscitará esta interrogação: o que apareceu primeiro: a música, ou os povos que a compõem? Isto é, somos o que cantamos ou cantamos o que somos? A resposta mais óbvia dirá que os povos surgiram primeiro. A resposta mais diplomata - e a diplomacia pode ser uma forma de adiamento das resoluções - dirá que o importante é a beleza das coisas; a resposta arrojada afirmará, categoricamente, que a música surgiu antes de ser composta.
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Uma leitura mais arrojada da história da música suscitará esta interrogação: o que apareceu primeiro: a música, ou os povos que a compõem? Isto é, somos o que cantamos ou cantamos o que somos? A resposta mais óbvia dirá que os povos surgiram primeiro. A resposta mais diplomata - e a diplomacia pode ser uma forma de adiamento das resoluções - dirá que o importante é a beleza das coisas; a resposta arrojada afirmará, categoricamente, que a música surgiu antes de ser composta.
Se pegarmos na última teoria - e só essa é que interessa neste tempo outonal - podemos então defender que o samba é anterior ao achamento do Brasil, pelo que, nesse sentido, foi a música (que já existia) a fazer o brasileiro - e não a inversa. Talvez o samba já existisse e requeresse apenas uma mente que o puxasse para fora, uma voz que o cantasse ou um corpo que o requebrasse.
Em 1900 o conde Tolstoi escrevia um texto, que intitulou "tinha de ser assim?", onde pinta um retrato terrível da sociedade desse tempo: um retrato de miséria e opulência, de tristeza e sofrimento, de fome e excesso. Um retrato com cores outonais ou invernosas, onde a alegria não tem lugar e os corpos estão cobertos de chagas, de pele e osso, de jóias e caviar. É um tempo doloroso, que existiu em tantos outros países, em tantos outros tempos.
Em 1915 Sergei Rachmaninov compunha as Vésperas, a sua maior obra para coro a capella. Uma obra monumental, baseada em antigos cantos tradicionais, que recupera raizes nacionais e pretende fugir das influências ocidentais. Uma obra terrível, como só a beleza absoluta o pode ser. Uma obra volumosa e densa, inadequada para tempos modernos de ligeireza e rapidez, imprópria para quem acha que o mundo é o seu pequeno mundo.
Tal como não foi Ary Barroso que compôs Aguarela do Brasil (embora em termos oficiais o seja) também, em bom rigor, não foi Rachmaninov quem compôs as Vésperas. Quando, em 1500, Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, já ouviu o ritmo daquele batuque, batuque que fez do brasileiro o que ele é. O conde Tolstoi em 1900, e o compositor quinze anos depois, revelaram o que já existia desde há milénios: o peso, a sonoridade baixa, a espessura, a elevação ao céu de almas divididas entre o penoso e a abundância.
Parece-me óbvia a resposta à pergunta inicial: na verdade, é a música que faz os povos.
JdB
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