Neste pequeno texto há dois personagens, Vítor e Rafael, ambos gémeos. São tão gémeos que, para efeitos de narrativa, não só não se distinguem um do outro como dizem exactamente o mesmo, e encontram-se nos mesmos locais com uma simultaneidade sem explicação científica. O que diz um diz o outro – sendo que a inversa também é verdadeira. Onde está Rafael pode ler-se Vítor. Diria ainda, correndo o risco da repetição, que a inversa também é verdadeira.
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Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.
Rafael – como poderia ser Vítor – de há muito que sorria ao ouvir esta frase do sermão da montanha. Apanhara o hábito de seu pai, um homem sério, austero e grave que se vira precocemente viúvo quando a esposa tombara no chão, silenciosa e discreta, num desgraçado e chuvoso domingo de Ramos.
Vítor – como poderia ser Rafael – voltara a ouvir o texto sagrado, já sem sorriso. Franzira-se-lhe um sobrolho e correra-lhe uma lágrima furtiva derivada de uma orfandade paterna recente. De facto, o pai dos gémeos – entre si, e inversamente falando – finara-se com um sorriso segurando entre as mãos fortes e grandes um diário. Foram encontrá-lo com os olhos abertos, um fio de saliva a escorrer-lhe pelo canto da boca fina e séria e um estetoscópio – totalmente desenquadrado da decoração envolvente – numa banqueta ao lado.
Rafael – como poderia ser Vítor – fechara-lhe os olhos, arrumara o instrumento médico com um misto de espanto e temor de que sempre se reveste o inexplicável, e sentara-se a ler o diário. Um dos gémeos – ou seria o outro? – sugerira que se começasse pela página aberta, que talvez se derramasse uma luz sobre o funesto evento.
17 de Fevereiro. Voltei a casa de AT. Recebeu-me linda e deslumbrante, com um sorriso convidativo e pecaminoso. Estava vestida de enfermeira, o meu fetiche mais recorrente. A farda justa realçava-lhe as formas volumosas e, junto a um peito que a cirurgia estética tinha retocado, um relógio pequeno marcava as 15 horas. Estendeu-me uma mão forte e profissional, lamentando o meu ar macilento. Instou-me à posição horizontal na marquesa, alegando a necessidade de um exame completo. Na hora que se seguiu observou-me de norte a sul, de nascente a poente, de A a Z. Usou todos os seus sentidos, justificando a necessidade de um diagnóstico perfeito. Quando a possuí – e foi ela, AT, quem explicitamente me pôs o verbo nos lábios – revesti-me de uma felicidade imensa, como o doente a quem o médico transmite palavras de cura. A enfermeira levou-me à porta, solícita, confiante, amável – e desnuda. Mantivera sempre um estetoscópio ao pescoço, como quem mostra ao paciente que todos somos serviço e prazer. Estendeu-me a mão profissional e forte e pediu que lhe devolvesse o instrumento médico aquando da próxima visita. Detectou-me um corpo pouco ginasticado, mencionando que talvez fosse bom convidar uma acrobata da vez seguinte. Amo-te, AT, e não vejo o dia de te possuir de novo.
Vítor – como poderia ser Rafael – interrompera a leitura do diário para aplicar de novo o verbo abrir – já abrira a boca, faltava abrir a porta. Na soleira da dita encontrava-se uma senhora muito bonita, fardada de enfermeira, com um relógio pequeno a compor um decote displicente onde saltitava um peito retocado pela cirurgia.
Muito boa tarde. Estou a falar com os donos da empresa Irmãos Mansos e Herdeiros? Talvez tenham ouvido falar na minhas iniciais – AT... O meu nome é Andreia Terra, e conheci bem o vosso pai...
Bem-aventurados...
JdB
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* publicado inicialmente a 21 de Junho de 2010
1 comentário:
ahahahahahahahahahahahahah ja tinha saudades destes textos
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