Em fase de quarentena, muitos museus e casas de cultura dão acesso online ao que têm de melhor, sem termos de sair. Entram-nos em casa em modo saudável e, admitamos, confortável, com uma programação especialmente criativa e arejada, que vai muito além da agenda comum. Esmeraram-se, portanto, neste presente virtual.
Por exemplo, a Gulbenkian oferece concertos diários às 19h [de Portugal], decorridos nos melhores auditórios do Ocidente, que também podem ser revistos mais tarde. Lançou curta-metragens, para divulgar os múltiplos instrumentos da orquestra pela perspectiva de quem os domina e pode desvendar os segredos que encerram. Desfilam, assim, diferentes membros da orquestra da Fundação a contar as inimagináveis potencialidades do instrumento que tocam, exemplificadas através de pequenos trechos das melhores árias. Num, o sentido de humor e o sarcasmo até ao ridículo (Prokofiev); noutro, o tom épico (Tchaikovsky) ou antes assustador (Prokofiev); noutro ainda, uma tonalidade nostálgica inédita na música (Stravinsky); ou a explosão cromática que uma peça musical pode comportar (Bach); ou a luminosidade que emerge de uma alegria mais funda (Mozart); ou a estilização estética e a imparável criatividade (Beethoven); ou o instrumento antes situado junto ao coro que só com Beethoven passou para a orquestra (trombone, a partir da V Sinfonia); ou a responsabilidade de ser o referencial de afinação de toda a orquestra (oboé); ou a voz crítica do despotismo estalinista por meio de um registo no limite dos agudos (o violoncelo a subir acima dos violinos, com Prokofiev); ou a vocação para a fanfarra (trompete) ou para triunfalismos (trombone, muito ao gosto de Wagner); ou a textura mais rica e difícil de obter num som (o ´vibrato’) aplicável à quase totalidade dos instrumentos musicais; etc. Os exemplos sucedem-se e o espanto também, à mesma velocidade.
O site contém ainda entrevistas telegráficas aos profissionais nos bastidores, que sustentam no anonimato o trabalho maravilhoso que chega ao palco. Revelam histórias antológicas, como a do ‘maquinista’ a quem calhou entregar o ramo de flores à Maria João Pires, no final da actuação, e esta resolveu dar-lhe um beijo, deixando o pobre funcionário ainda mais nervoso, mas o público encantado e a aplaudir entusiasticamente. As blagues divertidas de uma Fundação com décadas são apenas o lado folclórico da malha imensa de especialistas que fazem da Gulbenkian um expoente de excelência. Neste ciclo da sua vida, a orquestra goza o privilégio de o maestro titular ser o músico- surfista Lorenzo Viotti, de pouca idade mas muito carisma, autoridade natural e audácia. De ascendência franco-italiana, o jovem nascido na Suíça francesa numa família de músicos --- ele próprio uma mistura feliz de nacionalidades europeias --- trouxe para Lisboa uma combinação de frescura e de rigor, que ajudaram a renovar a programação mais clássica e previsível das temporadas de música.
Como se fosse pouco, o site de música da FCG ainda tem um link que permite acompanhar as óperas do MET, directamente de Manhattan para nossa casa, sem termos de abrir a porta a estranhos. Por último, oferece a funcionalidade SPOTIFY, para facilitar a audição e a colecção de boa música. Haja tempo para aproveitar tudo… https://gulbenkian.pt/musica/a-musica-continua/.
Dois testemunhos de hemisférios diferentes revelam, no seu jeito pessoal, o sentido que podemos desbravar nesta quarentena misteriosa, mas com potencial positivo. O primeiro, do Arcebispo de Lima, explica como a Igreja de portas fechadas está, afinal, na rua reconhecível no rosto dos mais frágeis e generosos, com quem Cristo disse identificar-se:
O segundo vem da bisneta de António Ferro e de Fernanda de Castro, para recordar os últimos 13 anos da bisavó confinada à mesma cama, no mesmo quarto, paralisada, depois cega, mas nunca desanimada nem falha de uma agenda divertida, porque nunca lhe faltou coragem para tirar o melhor partido de uma condição dificílima. A pedra de toque esteve na atitude que escolheu para si, recusando tomar-se por prisioneira de quatro paredes. É verdade que recebia visitas, mas sofria dores terríveis e a situação prolongou-se por mais de uma década:
«Parte da família onde cresci era de artistas, filósofos, escritores, poetas, um padrinho pintor. Era normal ver as pessoas muito tempo fechadas em casa, a ler, a pensar a escrever, a fazer desenhos. Horas e horas e horas. Elas pareciam saber o que fazer consigo mesmas. Eu cresci assim. A minha bisavó dizia 'Quando pensarem que estou sozinha, lembrem-se que estou comigo.' Ela era poetisa, dinâmica, activista e um dia caiu na rua, uma trombose, e deixou de poder mexer todo o lado esquerdo do corpo. Ficou na cama 13 anos, sem nunca sair à rua, nem à casa-de-banho. Só a conheci assim. Fez da sala um quarto e as pessoas iam lá como se nada fosse, como se ela andasse, íamos nós, ou iam amigos e artistas, como Natália Correia, Ary dos Santos, falava-se, dizia-se poesia, ela ria. Dava-me explicações de francês e quando eu lá chegava dizia, 'Vem pelo lado direito filha, para eu te fazer uma festa.' E sorria, meiguinha. Era tudo normal. Às vezes ela precisava pedir às pessoas que não viessem para poder ficar sozinha e escrever com calma, com a mão direita. Continuava a editar os seus livros. Um dia ficou cega. Podia ter sido novo drama mas ela pediu a uma pessoa que escrevesse os poemas que ela ditava e continuou a editar livros. Cega, paralítica, enfiada numa cama, cheia de escaras - que são feridas dolorosíssimas que resultam de se estar deitado horas a fio no mesmo sítio. E mesmo assim continuava a ganhar o seu dinheirinho. O mundo das possibilidades é mesmo infinito...
E as pessoas continuavam a lá ir, não porque 'coitadinha', mas porque lhes apetecia, porque dava vontade, iam como se ela andasse, como se ela visse, como se tudo aquilo fosse um detalhe, para dizer e discutir poesia. Ela tornou tudo aquilo um detalhe, ela ria e às vezes dizia, 'pronto, agora vão, estão-me a cansar.' E os amigos iam, ainda meio distraídos nas suas discussões e a dizer 'shiu, a Fernanda está-se a cansar.' Um dia, a dormitar, engasgou-se com a dentadura e morreu. Pronto, a vida é simples assim, acabou. Que saibamos não nos dar mais importância do que a que temos. Às vezes estão muitas formigas na rua, num chão, cheias de projectos, a transportar coisinhas com objectivos nobres, mas nós passamos a correr e, com os nossos pés, facilmente matamos 200, assim duma penada. É assim, faz parte da lógica perfeita e insondável do universo. E a vida continua.
Cresci a ver pessoas não fechadas numa casa, mas numa única divisão, ou apenas na cama, anos a fio. Vi que é possível, vi que a felicidade não depende da saúde nem do sítio físico em que estamos. Depende de outra coisa, cá dentro. Quem tiver coragem de aprofundar, abre então a Caixa de Pandora e é finalmente livre de qualquer acontecimento exterior. Só para quem tiver coragem, só para quem tiver coragem.»
Marta Gautier
Boa Semana Santa em boa quarentena, ambas inspiradas e inspiradoras a partir de dentro.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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