01 abril 2020

Textos dos dias que correm

O tempo

Há uma tribo em África, de que o nome e geografia não são relevantes, em cujo vocabulário não consta a palavra presente. A expressão que talvez mais se aproxime do conceito é instante. Têm passado e têm futuro, mas não têm presente, remetido para a dimensão de um ponto microscópico no tempo. 

A ideia não é disparatada, nem talvez original. Para essa tribo, o movimento da cabeça representa o olhar do homem para uma realidade que só aparentemente é tripartida: fixam, geográfica e fisicamente falando, o local onde nasce o sol e onde este se põe; é um movimento realizado com a cabeça erecta, perscrutando a linha do horizonte, num movimento que poderá ser circular: nascente é o passado, poente é o futuro. Nesta linha de raciocínio, o presente não tem representação ao nível do olhar. No preciso instante em que algo é presente já se tornou passado, porque o sol, no seu "movimento", não tem um único momento de imobilidade. O instante é uma palavra que quase não tem tradução em tempo ou em objecto; é algo invisível a olho nu. Ser agora e ser passado são coincidentes.

O conceito desta tribo africana poderia ser aplicado ao olhar ocidental que temos sobre o tempo, no sentido de passado, presente e futuro. O passado existe - é a realidade; o futuro não existe, é a expectativa; o presente, a existir, de pouco serve. Viver o tempo presente seria, para esta tribo africana, um olhar constante sobre uns pés quietos, imobilizados na terra batida. Seria, para eles, um imobilismo ocular que se traduziria num imobilismo físico e, nesse sentido, um risco para si próprio e para a tribo, presa fácil de predadores e inimigos.

Num raciocínio um pouco lateral, o passado é a única realidade que conhecemos. Em bom rigor não será uma realidade, mas uma leitura da realidade. Não estando a convivência das pessoas ao nível do mensurável e da exactidão, a forma como cada um de nós vê o passado é a forma como cada um de nós vê o passado. Um mesmo tempo será lido como uma alegria ou como uma tristeza por pessoas diferentes, ainda que protagonistas, ambas, do mesmo teatro. Como se resolve essa dualidade que, nalguns casos, pode ser inibidora de consensos? Olhando apenas para o futuro, que é a única massa que cada um de nós pode ainda moldar.  Fazer como os membros dessa tribo: olham para o passado para aprender, para o futuro para moldar. 

(...)

Ashley Coates Colbert, in The notion of time in Africa - a western look (tradução minha, livre)     

     

2 comentários:

Anónimo disse...

Bom texto. Para se meditar. Tem uma porta de entrada muito ampla mas que nada diz do interior nem da saída.
ao

JdB disse...

ao,

Dou-lhe toda a razão. Talvez tenha sido por isso que só coloquei este excerto de um texto mais vasto: para que pensemos como será o interior ou a saída. Ou como desenharia, cada um de nós, essas partes da casa...

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