13 abril 2020

Daquilo que me passou ao lado nos últimos dias

A vontade própria, alguma competência, talvez, e sorte, permitiram que vivesse os últimos 13 anos em regime de tele-trabalho. Apesar de durante algum tempo ter vivido sozinho, não tive de fazer esforço para manter / criar rotinas, horários laborais, disciplinas de trabalho. Tudo correu de forma muito natural: em condições normais trabalhava oito horas por dia / cinco dias por semana; folgava aos feriados e fins de semana ou, se fosse necessário ou me desse jeito, trabalhava ao sábado e folgava durante a semana. Nesse sentido, a quarentena não me apanhou desprevenido - é assim que tenho trabalhado ao longo dos últimos anos; é assim que tenho trabalhado com gosto, cumprindo uma vontade interior de rotinas, regras e organização.

Apesar de o confinamento não afectar a vertente profissional da minha vida, afecta a parte social: tenho amigos / família / pessoas próximas que vejo com uma regularidade semanal / quinzenal e que agora estou impossibilitado de fazer; sinto falta das conversas, da troca de opiniões ou de notícias, da partilha de vida. Também sinto falta da minha vida académica, da concentração que tenho nas aulas e não tenho atrás de um computador, do convívio com este ou aquele colega de quem me tornei amigo. Todo este confinamento, diga-se em abono da verdade, é tornado confortável pelo facto de viver numa casa ampla e com jardim.

Estes últimos dias deram para perceber uma área do meu quotidiano onde o confinamento deixou destroços: a minha vida religiosa. Numa frase simples poderia dizer que grande parte da Páscoa me passou ao lado. Ontem, por exemplo, esqueci-me de "ir" à missa. 

(Um dia fiz um retiro que, não sendo de silêncio, tinha muitas partes em que estávamos sozinhos e calados; num instante a minha mente fugia daquilo em que me tinha proposto meditar para pensar na profissão, nos projectos, na avaliação de pessoal, na redução de custos ou aumento de eficiência.)

Numa casa onde sou o único habitante com vida religiosa, o confinamento atirou-me para uma (quase) assustadora falta de prática religiosa: assisto à missa sentado ao computador como quem está a ver um youtube, disperso-me com o mail que entra ou com a notícia que saiu naquele momento. Assisti à Via Sacra do Vaticano ontem de manhã; não assisti à missa de Páscoa do Papa nem de mais ninguém. Quando dei por mim tinham passado as horas, e eu estava distraído a olhar para a televisão ou a apagar fotografias do telemóvel.

A Páscoa passou-me ao lado. Fez-me falta a rotina de sair a uma hora certa para ir à "minha" igreja, encontrar a minha comunidade, cantar as músicas que se repetem com encanto ano após anos; fez-me falta estar num local religioso onde conheço a vida das pessoas que assistem à missa, onde o ambiente me é propício para rezar, para meditar, para ensaiar propósitos de melhoria que não cumpro. Faltou-me o espaço, os sons habituais, os cheiros próprios, as caras conhecidas, as histórias de sofrimento ou de alegria ou de esperança em tantas pessoas que conheço daquela paróquia. Faltou, por fim - ou talvez mais importante - a disciplina para criar um ambiente interior próprio propício a uma certa elevação de espírito. 

Não sei como é para os outros que, embora vivendo sozinhos enquanto praticantes, querem manter uma certa prática religiosa. Para mim o confinamento foi um desafio. Em termos de linguagem de concursos televisivos diria que a prova foi não superada. Não é grave, contudo. É apenas um sinal de alerta importante, como se fosse o corpo a dar um sinal: não que tenho de cumprir algo com mais afinco, mas que me falta qualquer coisa para um maior equilíbrio.

JdB        

   

4 comentários:

Anónimo disse...

JdB
Ja muitos nos uniam, mas este é mais um elo na nossa corrente .
Também eu não consigo «ir» á missa , a «ficar» a ver televisão.
A missa não é um programa media é uma vivência feita de todos os sentidos, que pede a presença e exercício deles todos .
Na missa está-se inteiro, na televisão está-se do lado de fora.
Afinal nem todas as refeições podem ser servidas em take away, a missa é a primeira das excluidas.
abraço
ATM

Anónimo disse...

Caros JdB e ATM,

Percebo-vos bem.

Acabei por assistir na televisão a parte das cerimónias, mas com pouco comprometimento, a "olhar para o relógio".

Familiares mais devotos e talvez menos exigentes, e a conveniência de dar o exemplo, evitaram maiores ausências.

Que este tempo suma depressa.

Abrs
fq

JdB disse...

ATM e fq,

Agradeço os vossos comentários. Se eu precisasse de apoio no meu infortúnio, a vossa partilha já tinha feito trabalho suficiente.

Ontem falei a um amigo bastante mais velho do que eu a desejar Boa Páscoa; tinha assistido à missa do Papa e tinha ficado de "coração cheio" com a benção Urbi et Orbi. Invejei-o, confesso. Talvez ao dom da fé se venha a acrescentar o dom da fé virtual: alterando o título de um livro de Gonçalo M Tavares, "aprender a rezar na era do confinamento".

Abraço a ambos.

Anónimo disse...

Há grande diferença entre ter fé (um Dom de Deus) e não a ter.
Tal como vós (todos os deste post) uma missa pela TV ou pela NET, são 'mais amendoins'.
Como acredito que 80% dos portugueses são estúpidos e ignorantes, não poupo o nosso patriarcado a esta 'estatística'.
É estúpido ter igrejas e capelas fechadas por cauasa duma epidemia de treta.
Com estima,
ao

Acerca de mim

Arquivo do blogue