Hoje, em que assistimos – em directo – a um recuo da história, começo com as palavras de um “gin” de há dois anos sobre uma das mais Belas Adormecidas da arte mundial, que tinha sido corajosa e habilmente acordada, em 1934, pelo fundador do Estado turco moderno laico – Kemal Ataturk:
«O destino mítico do «Expresso do Oriente» coincide com o expoente do ponto de encontro das civilizações oriental e ocidental, no estreito vital do Bósforo – Istambul. Elo de ligação da Ásia à Europa, é a única cidade situada entre dois continentes. […] Volvidos cerca de cinco séculos de intervenções infrutíferas e caras, Istambul rendeu-se à traça original e aceitou acordar a Bela, que ficara Adormecida desde meados do séc.XV. Assim, em 1934-35, Hagia Sophia renasceu como museu-Basílica ortodoxa para revelar os tempos áureos de Constantinopla. Um monumento de luxo, que sobressai na lindíssima cidade banhada pelo Bósforo. Quando se cruza o limiar daqueles portais invulgarmente altos, mais do que a beleza, impressiona o eco da História milenar. Um passado ali quase palpável. Quase audível, como se ressentíssemos vibrar a passada fogosa das montadas dos cavaleiros cristãos, ao nosso lado. Uma experiência única!» [gin de 25.Abril.2018]
Quando o famoso templo dedicado à divina sabedoria (Sofia) foi convertido em Museu, houve logo a preocupação de recuperar a traça original do auge de Constantinopla e destapar os magníficos ícones que revestiam as paredes e tectos da basílica, entaipados enquanto funcionou como mesquita (séc.XV). Tornaram-se, aliás, numa fonte de rendimento para a economia do Levante, sendo uma das principais atracções turísticas de Istambul. Situada junto à poderosa Mesquita Azul, a Basílica da cristandade ortodoxa integrava o circuito imperdível da cidade. E estabelecia um valioso contraponto ao templo muçulmano vizinho, num diálogo de dois expoentes da confissão religiosa que lhes marcara, para sempre, a arquitectura. As duas linhas arquitectónicas levavam (e levam) a marca d’água dos cultos em que tinham sido forjadas!
Hagia Sofia – exterior, com minaretes acrescentados depois da primeira decisão de a adaptar a mesquita, após 1453. |
Hagia Sofia – o interior não conseguiu ser formatado segundo o culto muçulmano, reduzida a uma pobre mesquita a contra-gosto. |
Mesquita Azul |
Equivalente a Santa Sofia, havia ainda a pequena e igualmente maravilhosa Igreja de São Salvador in Chora, mais afastada do centro antigo, mas ainda mais especial em matéria de ícones, pelo melhor estado de conservação e em cobertura mais contínua por comparação com os vazios na Basílica da Sabedoria.
E foi pelo templo cristão mais pequeno que Erdogan começou a reversão do passo arrojado dado em 1934. Sem apelo nem agravo, em 2018, declarou São Salvador in Chora mesquita, apesar de nada naquele espaço estar talhado para tal. A quantidade enorme de murais com ícones lindos arrisca-se a ser, novamente, encoberta sob camadas de argamassa decorada a caracteres corânicos, pouco a ver com os inúmeros recantos de pequenas capelas quase labirínticas e tectos abobadados, sustentados por arcos.
Este mês, o Presidente turco foi mais longe e avançou sobre Santa Sofia assinando o decreto que a declara mesquita, doa a quem doer. Invoca um argumento deslocado, comparando o templo de Constantinopla com o Vaticano, como se Hagia Sophia fosse equivalente a uma transformação forçada da Mesquita Azul, essa sim concebida como espaço de oração maometano. O que diria Erdogan se a cristandade actual se propusesse transformar a magnífica Mesquita de Suleiman em catedral? É essa a equivalência do lado otomano. Por último, acusa o Ocidente de islamofobia numa jogada de vitimização.
Todo o processo prima pela precipitação, apanhando o mundo semi-desprevenido. A primeira cerimónia no novo culto já está marcada para 24 de Julho e Erdogan faz gala em ser um dos participantes. Nenhum dos protestos e lamentos internacionais o demoveu. Nem os avisos da UNESCO de que poderá revogar o cobiçado estatuto de Património Mundial, por poder constituir um atentado à obra original. Nem as súplicas do Papa Francisco, que afirma estar a sofrer com esta decisão unilateral. Nem o alerta do Conselho das Igrejas temendo um novo recrudescer da tensão entre muçulmanos e cristãos num país em acentuada radicalização religiosa. Nem a reacção oficial dos EUA a manifestar o desapontamento com este regresso a um passado mais obscuro e fechado.
É verdade que, em fase de atordoamento provocado pelo combate a esta estranha pandemia, assistimos a um boom de medidas polémicas, como se o ambiente de medo instalado tivesse assanhado derivas mais abusivas para fortalecimento de poderes pouco ou nada democráticos. À sua escala de potência intermédia, a Turquia de Erdogan acentua um regime mais teocrático na região, revertendo o movimento de abertura protagonizado pelo aclamado pai da nação turca, após a derrocada do Império Otomano, no final da Primeira Guerra Mundial. Significativamente, o tribunal turco, que emitiu o parecer onde se baseia a nova deliberação de Erdogan, taxou de ilegal a decisão de Ataturk, tomada há perto de 80 anos! Já é uma novidade atacar o fundador da República da Turquia. Percebe-se quanto estes gestos simbólicos, que açambarcam Santa Sofia e São Salvador in Chora, agitam a miragem do império perdido, como se o tempo fizesse marcha-atrás. Os únicos em festa são os segmentos tradicionalistas e mais passadistas da sociedade turca, núcleo de suporte eleitoral de Erdogan.
Na qualidade de historiador, que procura interpretar o presente, José Pacheco Pereira dedicou o seu último artigo no PÚBLICO ao tema, juntando dados do passado glorioso do que era o maior templo de Bizâncio com leituras geopolíticas que cada um aproveitará como entender:
- Artigo/Crónica de JPP
«A divina sabedoria
Na Aya Sophia não se sai como se entra, mas entrar como
mesquita não é a mesma coisa do que entrar num museu
Duvido que alguém preste muita atenção ao facto que motiva este artigo: a ameaça do retorno da Aya Sophia da sua actual função de museu para ser mesquita de novo. (Uso o nome turco, em vez do grego Hagia Sophia, mas como todas as coisas que têm muita história, tem muitos nomes.) É um ataque desnecessário e puramente político a um local dos mais importantes da nossa história comum do Ocidente, incluindo a própria Turquia, e que nada tem de religioso.
Na própria história dos locais sagrados do Islão este nunca foi muito relevante. O significado mais forte desta opção é o abandono de uma das decisões fundamentais de Atatúrk na sua tentativa verdadeiramente revolucionária de laicizar a Turquia. É contra isso que vai Erdogan.
Aya Sophia foi uma igreja cristã ortodoxa, uma igreja cristã latina, depois uma mesquita (estão lá os minaretes que foram acrescentados) e, por fim, um museu, no milénio e meio da sua história. As datas cruciais são 1453, 1931-5, mas estamos em 2020 e o significado deste processo, na Turquia de Erdogan, é um ainda maior afastamento do resto da Europa. Neste processo, a União Europeia tem muitas culpas: prometeu à Turquia o ingresso na União, se cumprisse determinadas condições, a Turquia cumpriu-as, e depois tiraram-lhe o tapete. Erdogan está lá também por causa disso, agora sob a asa sinistra de Trump, cujo secretário de Estado, Pompeo, todos muito religiosos, já lavou as mãos do futuro da Aya Sophia.
A transformação de museu em mesquita não é inócua do ponto de vista político e geopolítico e implica riscos para o património cultural preservado até hoje. O grande mosaico do Cristo Pantocrator e outros mosaicos bizantinos terão de ser de novo emparedados, como estiveram muitos séculos, e muitos detalhes da história cristã, por todo o edifício, terão de ser retirados ou escondidos.
A Aya Sophia é um daqueles locais difíceis da história pelo excesso de sagrado e pela densidade da sua própria história, tal como Jerusalém. Como todos os turistas acidentais visitei várias vezes a Aya Sophia. Como todos os turistas acidentais intelectuais, há sempre a presunção de que o olhar é diferente, ou de que, iludindo os outros visitantes comuns, se está lá como um viajante do século XVIII que foi visitar a Porta partindo de Marselha à procura do exótico. Tretas. Mas o que se vê é o que se vê.
Quando entrei pela primeira vez, repeti a sensação atribuída ao seu construtor, o imperador Justiniano, sobre a dimensão da cúpula, um feito arquitectónico e de engenharia que permitiu resistir a terramotos, vandalismo, destruições. A gigantesca cúpula, aliás, foi o modelo para as mesquitas, porque não havia precedente arquitectónico no Islão e Aya Sophia sempre foi durante séculos o maior prédio do mundo. Mas eu sou homem de detalhes e perdi-me pelos detalhes e ainda hoje, se lá voltar outra vez, vou de novo aos detalhes. Os detalhes e as histórias à volta deles, meias lendas, meias verdades.
Começo pelo Umbigo do Mundo, o Omphalos, o círculo de mármore onde eram coroados os imperadores bizantinos. Não é todos os dias que se está no Umbigo do Mundo.
À minha volta, no piso térreo, se houver fantasmas, passarão os cruzados latinos da Quarta Cruzada que profanaram a catedral, entrando com um carro de bois com prostitutas, quando da conquista de Bizâncio no século XIII, no meio do saque generalizado da cidade. Muito do saque foi para Veneza, cujo doge Dandolo, que participou no assalto, teve os ossos atirados aos cães e depois colocados num túmulo térreo, que só foi marcado no século XIX numa galeria da catedral. Este foi um dos incidentes que mais marcaram o cisma entre os católicos e os ortodoxos, pelo qual o Papa pediu desculpa.
Outro grupo de fantasmas é o dos que estiveram na última missa realizada na catedral imediatamente antes da invasão otomana, com a presença de Constantino XI Paleólogo, o último imperador bizantino. Saiu dali para combater e desapareceu, nunca tendo sido encontrado o seu corpo. Numa versão sebastianista, corrente entre os gregos da diáspora, não teria morrido e estaria no interior das muralhas à espera de sair e libertar a cidade dos turcos. Até hoje.
Subindo às galerias, é a explosão da grande arte bizantina dos mosaicos, em honra de vários imperadores e imperatrizes e sob a égide de Cristo Pantocrator, omnipotente, todo-poderoso. Olha-se para estas figuras, que sobreviveram aos iconoclastas, ao emparedamento, e nunca há cansaço, há sempre novos detalhes numa figuração densa de símbolos religiosos. Verdade seja dita, também as devemos ao sultão Abdul Medid, que as protegeu e restaurou.
Na Aya Sophia não se sai como se entra, não se chamasse à coisa "divina sabedoria", mas entrar como mesquita não é a mesma coisa que entrar num museu. Não porque haja algum mal nas mesquitas - Istambul tem algumas -, mas o olhar muda, os gestos mudam, e muito do que hoje vemos não pode ser exposto numa mesquita sem violar preceitos do Islão. Lá fora há muitas distracções, desinteresse e geopolítica e cá dentro é um assunto tão remoto como a estrela Sirius, mas temos gente que sabe história e é sensível à cultura que podia pressionar a embaixada e a nossa diplomacia. Em nome inclusive da herança de Mustafa Kemal Atatúrk, o pai dos turcos, coisa que não é certamente Erdogan.»
Historiador. Escreve ao sábado
José Pacheco Pereira – 11.JUL.2020
A boa notícia anunciada no “gin” de 2018 e desactualizada por este recuo histórico também confirma quanto a realidade é dinâmica, ora em fase positiva, ora em ciclos regressivos, como é o caso. De certo modo, a notícia infeliz de hoje dá motivos de esperança para confiarmos que a nova realidade pode não ser a última palavra sobre o destino atribulado da Bela, que um dia poderá voltar à vida no pleno respeito pela sua singularidade maravilhosa! Vale a pena esperarmos e empenharmo-nos por esse ganho civilizacional.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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