O silêncio é um estado de alerta
O silêncio é um «estado de alerta» que predispõe «para um encontro»: as palavras são do monge e abade cisterciense Erik Varden, nascido na Noruega, onde é bispo, e autor espiritual lido em meia Europa. O religioso, que antes de se tornar católico não acreditava em Deus, recorda que encontrou «pela primeira vez» o silêncio através da música, «porque a verdadeira música é, na realidade, a articulação do silêncio».
«Desde jovem escutei muita música. Ao mesmo tempo, cultivava um grande desejo de silêncio. Em criança, quando a minha família estava ausente e ficava sozinho em casa, queria estar tranquilo e experimentar o silêncio. O meu coração, penso, estava a preparar-se para aquilo que conheceria mais tarde, a oração.»
Num dos seus livros, afirma que o mundo contemporâneo perdeu o primado da interioridade. Mas hoje vemos a proliferação de práticas “espirituais”, como o “mindfulness”, o ioga e semelhantes. Que diferença existe entre o silêncio do cristianismo e o silêncio que não tem Deus?
Penso que o mundo contemporâneo perdeu muito do vocabulário requerido para falar da interioridade. Mas isto não significa que a inquietação por uma vida interior seja menos forte. Sob certos aspetos, esta pode inclusive ser mais intensa, mas resulta frustrada e não tem modalidades de expressão adequadas. Toda a prática que permite a redescoberta desta dimensão do ser é potencialmente abençoada; ainda que, fora de uma moldura de fé, há sempre o risco de confundir os meios com o fim. O silêncio sem Deus é uma função da ausência, onde o confronto radical consigo próprio aumenta um sentido de solidão. Para um crente, o silêncio é um estado de alerta para estar pronto para um encontro, como o profeta Elias sobre o monte Horeb. O silêncio do monge não é autoisolante, mas o ambiente pressuposto para esta busca de comunhão.
Dag Hammarskjöld, o desaparecido secretário-geral da ONU, quis uma sala do silêncio no Palácio de Vidro de Nova Iorque, porque a meditação, sustentava, era importante antes de tomar decisões políticas. Hoje, os políticos “twittam” continuamente, enfurecem-se nos “talk-shows”, e não parecem conhecer muito a arte da meditação. Como voltar a trazer o silêncio para a sociedade atual?
Decidindo fazê-lo. Cada um pode fazê-lo, quer tendo ou não tendo espaços destinados a isso. Isso requer coragem, força de vontade e prática, mas não está para além das possibilidades de cada pessoa.
Cita o teólogo e Beato John Henry Newman: «Estar confortável significa não estar seguro». O nosso tempo – era a tese do filósofo Roger Scruton – tem a mania de tornar segura cada coisa: a vida, o trabalho, o amor… Mas sem perigo não há risco. Estar em silêncio significa estar abertos ao que pode acontecer na escuta. Significa não ter todas as respostas.
Um dos paradoxos do nosso tempo, no qual a nossa fragilidade é tão patente, não só na crise Covid com as suas consequências, é que fazemos tudo aquilo que podemos para calcular e eliminar o risco. Mas viver é arriscar. O que torna o ensinamento de Jesus tão fresco e, em sentido literal, provocatório, é a sua insistência neste ponto. Ele di-lo em muitos momentos: seguir-me é perigoso, mas correr este risco é a maneira de se ser livre e, em definitivo, alcançar a alegria. Parece-me, por isso, legítimo perguntarmo-nos: a nossa coletiva e obsessiva busca de segurança, por absurdo, não nos conduzirá sobretudo a sentirmo-nos ansiosos, fechados e tristes?
O tema do desejo regressa muitas vezes às suas páginas: «O nosso tempo é desconfiado para com as palavras e dogmas. Todavia, conhece o significado do desejo. Deseja confusamente, sem saber o quê, a não ser a sensação de ter em si um vazio que precisa de ser preenchido». De que maneira o silêncio e a prática do silêncio podem ajudar-nos a entrar numa perspetiva religiosa que pode preencher o nosso desejo?
Acredito profundamente que o que disse é verdadeiro. Penso que muita da dor interior pode ser inscrita na insatisfação e no desejo não satisfeito. Reconhecer o desejo é, de qualquer modo, potencialmente humilhante e perigoso (voltamos ao ponto de partida, o risco) quanto mais me faz compreender que não tenho tudo o que quero, que não sou tudo aquilo que gostaria de me tornar ou ter dentro de mim. Isto é contrário ao espírito do nosso tempo, que nos pede para proteger uma nossa imagem de sucesso, triunfo e plenitude. Quantos de nós têm verdadeiramente vidas assim? O stress de projetar uma imagem de nós próprios que não corresponde à nossa verdade mais profunda pode quebrar uma pessoa na sua vitalidade, ao ponto de ameaçar o inteiro sentido de si. Ao contrário, quanto é belo encontrar homens e mulheres que estão em paz com a sua incompletude, o que lhes permite estar num estado de maturação, recebendo esse crescimento como um dom, em vez de o reclamar como uma conquista. Se os crentes pudessem, cultivando o silêncio, crescer na coragem de viver desta maneira, seriam, mesmo só com a sua existência, uma inspiração para os outros, uma espécie de pioneiros na autenticidade.
Música e silêncio parecem estar em oposição. Ou não?
A música brota do silêncio e volta ao silêncio. O que há de mais comovente no silêncio que se segue a uma grande performance musical, quando o conteúdo espiritual de uma obra excelsa ressoa como uma espécie de silêncio substancial entre os músicos e o auditório, criando ao mesmo tempo um sentido de plenitude e um sentido de ulterior desejo, tanto mais que a música se dirige fora de si para uma profundidade que só o silêncio pode preencher? Penso numa imagem que me é querida: o incomparável Claudio Abbado, após a sua direção da “Terceira Sinfonia” de Beethoven, em Lucerna, a 17 de agosto de 2013, uma das suas últimas antes de morrer. Foi arrebatado num profundo recolhimento, totalmente rendido à música que orientou, visivelmente exausto pela própria música, e ao mesmo tempo radiante de plenitude e de presença. Uma magnífica imagem do potencial humano!
Lorenzo Fazzini
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
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