06 janeiro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

«ADORAÇÃO DOS REIS» ENTRE O HERMITAGE E BARCELONA 

Como bom italiano, Veronese (1528-1588) foi um pintor festivo, talentoso e ousado, que se aventurou em telas e murais gigantes para os inúmeros palácios e Igrejas de Veneza. Nascido em Verona (daí a alcunha ‘Veronese’), fez a formação artística e passou a viver na cidade dos canais, pelo que rapidamente incorporou a forte influência oriental da metrópole mais asiática de Itália. 

A sua «Adoração dos Magos» – na colecção do mítico Hermitage – era um modelo de tamanho portátil para entusiasmar algum mecenas a escolher aquela pintura opulenta para ser replicada em grandes dimensões. A cena decorre à luz do dia e o horizonte abre-se a uma enorme faixa de céu em azuis suaves, nas tonalidades românticas que poderiam corresponder a um nascer-do-sol. O ambiente é majestoso e sereno, com as ruínas de um portentoso templo de colunas coríntias a dar solenidade ao conjunto. A representação do céu é uma das acrobacias de Veronese, que não se esquivava a proezas pictóricas, como as que se acumulam nesta «Adoração». Todos os tecidos, nas cores e na textura, são magistrais. O véu que S.José levanta para mostrar o Menino aos três sábios é de uma transparência cristalina. Significativamente, é na figura de José que o pintor se auto-retratou, numa metáfora perfeita da sua função de mensageiro! Aos Magos, como a nós, empenha-se em revelar o protagonista daquele episódio memorável. E logo este novo ano de 2021 foi dedicado pelo Papa Francisco a S.José (até 8.Dez.2021), pelo que a importância da sua mediação é mais uma coincidência com o nosso tempo.  

Outro aspecto invulgar da obra é a diversidade das personagens que ali contracenam, marcadas por traços físicos e atitudes diferentes, uns enternecidos, outros curiosos, outros distraídos, qual galeria de retratos de um bom romance. Em compensação, as montadas inclinam-se em vénia sobre o Pequenino, seguindo os Magos e a maioria dos pajens: os camelos à esquerda e um puro sangue à direita. 

Em vez de uma disposição ao centro, o italiano preferiu colocar a Sagrada Família no extremo esquerdo, onde se inicia a leitura (na matriz ocidental). Na variedade cromática da palete do pintor, os tons mais luminosos foram reservados para a Mãe e para o Bebé, cujo rosto sobressai emoldurado pela bordadura cintilante da organza branca que S.José segura para revelar ao mundo o rosto humano de Deus. 

Se a pintura é um veículo magnífico do Belo, a música é para muitos a primeira das Artes, a ponto de um escritor latino do século VI – Cassiodoro – considerar a sua ausência o pior castigo: «Se continuarmos a cometer injustiças, Deus deixar-nos-á sem a música». Também um escritor ateu do século XX –Emil Cioran– descobriu nesta forma artística a marca do Deus vivo: 

«Quando escutardes Bach, vereis nascer Deus... E pensar que tantos teólogos e filósofos desperdiçaram noites e dias a procurar provas da existência de Deus, esquecendo a única!».

(in «Lágrimas e santos», 1937)

A Beleza em que Dostoievski confiava para salvar o mundo cumpre-se plenamente, quando permite intuir – inclusive, aos mais cépticos– a possibilidade de o mundo ter Pai, apesar de o mal que vemos diariamente (incluindo dentro de nós…) poder antes sugerir uma orfandade irremediável. No fundo, mil anos antes de Cioran, Cassiodoro baseara-se na mesma prova da existência do Deus vivo, ao formular a maior perda causada pelo mal humano. 

Recuamos ao primeiro século d.C. e outro escrito revela que Deus é o Verbo. Porém, sem despiques entre formas de Arte, é numa pobre gruta de Belém que o Filho aceitou assumir carne-e-osso para habitar na humanidade e inspirar incansavelmente Bach, Händel, Tchaikovsky, também os U2, Bruce Springsteen, Leonard Cohen, Bob Dylan, Eric Clapton e tantos outros, cujos acordes reavivam essa Presença, que faz História connosco. De certo modo, acordam o mistério do Natal, como se tivessem ouvido o Céu em festa, que foi mostrado aos pastores párias, há dois mil anos.  

Hoje, Dia de Reis, há comemorações maiores em Espanha, começadas na véspera com a ‘cabalgata de los Reyes Magos’, a quem as crianças entregaram a carta com o que gostariam de receber no sapatinho. É um enorme frisson, que se completa com a iniciativa da Fundação La Caixa, onde as paredes milenares da basílica de Santa Maria del Mar, no centro histórico de Barcelona, transbordaram de música (há mais tempo). O repertório escolhido foi o Aleluia do «Messias» de Georg Friedrich Händel, que se passou a ouvir de pé –  reza a lenda – depois de o monarca britânico presente na estreia da ária em Londres, se ter erguido, impressionado com aquela apoteose. O remate da actuação no templo medieval catalão resulta na melhor súmula da visita dos Magos ao Bebé, quando uma enorme forma estelar paira ao nível dos vitrais, composta pelos focos de luz evocativos dos 350 cantores, que acompanharam a Orquestra Barroca Catalana. Depois de as suas caras darem vida e voz à pedra gótica, tornam-se pontos reluzentes e unem-se em estrela, trazendo para dentro de Santa Maria del Mar um pedaço da abóbada celeste:

Possa o Novo Ano desvendar-nos o mesmo Céu em festa que inspirou Bach, Händel e... porque não, a nós? Feliz Dia de Reis e Bom Ano de 2021!

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

 

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