19 setembro 2023

Cartas dos dias que correm

 Ludwig van Beethoven nasceu em 1770 e morreu em 1827. Em 1802 - 25 anos, portanto, antes de ter morrido, escreveu esta carta em Heiligenstadt, onde se encontrava a descansar por recomendação médica. A carta - conhecida como o Testamento de Heiligenstadt - era dirigida aos irmãos mas nunca foi enviada, tendo sido encontrada na sua secretária após a morte do compositor. Nela, Beethoven reflecte, desesperado, a tragédia da sua surdez. Tinha 32 anos.

A tradução foi tirada daqui, onde por ler-se a carta na íntegra. O tradutor informa: a tradução aqui apresentada respeita a pontuação e a sintaxe descontínua do Testamento, evitando assim a imposição ao texto de uma calma e coerência que o origi­nal não possui

JdB

Ó vós, humanos, que me julgais ou declarais hostil, obstinado ou misantropo, como sois injustos para comigo, pois não sabeis as causas secretas que me forçam a parecer como tal, desde a infância que o meu coração e o meu espírito se inclinam para o terno sentimento da afeição, e sempre estive disposto a realizar grandes actos, mas considerai que nos últimos seis anos me tem atormentado um estado lastimável, agravado por médicos incompetentes, de ano para ano iludido com a esperança de melhorar, e, finalmente, forçado a encarar a perspectiva de um mal permanente (cuja cura poderá durar anos se não for de todo impossível), nascido com um temperamento vivo e ardente, sensível até às distracções da sociedade, cedo tive de me isolar dela e passar a minha vida em solidão, e quando por vezes quis superar tudo isto, oh como fui duramente repelido pela redobrada triste experiência da minha surdez, contudo não me foi possível dizer às pessoas: falai mais alto, gritai, pois eu sou surdo, ah como poder divulgar a fraqueza desse sentido que eu deveria possuir num grau mais perfeito do que os outros, um sentido que outrora possuíra na sua maior perfeição, numa perfeição que certamente só poucos na minha profissão possuem ou possuíram - oh, não posso, por isso perdoai-me quando vereis que me retiro, eu que gostaria tanto de me juntar a vós, a minha desventura é dupla-mente penosa pois, devido a ela, sou obrigado a ser mal julgado, para mim já não poderá existir prazer na vida em sociedade, nem conversações distintas, nem mútuas confissões, só me é permitido juntar-me à sociedade quando uma estrita necessidade o exige, sou obrigado a viver como um exilado, quando me aproximo de um grupo de pessoas aflige-me uma ardente angústia, com receio de correr perigo de dar a perceber o meu estado -assim vivi este meio ano que passei no campo, seguindo o conselho de um médico sensato, a poupar o mais possível o meu ouvido, o que quase correspondia à minha actual disposição natural, embora por vezes arrastado pela necessidade de companhia me deixasse seduzir, mas que humilhação, quando alguém ao meu lado ouvia o som longínquo de uma flauta, enquanto eu nada ouvia, ou quando alguém escutava o canto do pastor, e eu mais uma vez nada ouvia, esses acontecimentos levaram-me quase à beira do desespero, e pouco faltou para eu ter posto um fim à minha vida - só ela, a arte, me deteve, ah pareceu-me impossível abandonar o mundo antes de ter produzido tudo aquilo para o qual me sentia predisposto, e assim prolonguei esta vida miserável — verdadeiramente miserável, com este corpo de tal modo frágil, que qualquer mudança súbita consegue fazer passar do melhor estado ao pior — paciência —, sim, é ela que terei então de escolher como guia, dizem, e assim o fiz - espero que a minha resolução de perseverar seja duradoura, até ao momento em que as impiedosas Parcas desejem quebrar o fio, talvez melhore, talvez não, mas estou sereno - apenas com 28 anos forçado a ser filósofo, não, não é fácil, e para um artista muito mais difícil do que para qualquer outro — Deus! tu contemplas do alto a minha alma, conhece-la, sabes que o amor ao próximo e a vontade de fazer bem residem nela, ó humanos, quando um dia lerdes isto, pensai que fostes injustos para comigo, e que o desditoso se console por ter encontrado alguém como ele, que, apesar de todos os obstáculos da natureza, fez sempre tudo o que esteve no seu poder para pertencer ao mundo dos homens e artistas dignos... 

(...) 

— vós, ó meus irmãos Karl e Johann, logo que eu tiver morrido e o professor Schmid ainda estiver vivo, pedi-lhe em meu nome que descreva o meu mal, e juntai esta folha escrita à história da minha moléstia, para que ao menos o mundo se reconcilie tanto quanto possível comigo - ao mesmo tempo declaro-vos ambos herdeiros da minha pequena fortuna (se for permitido chamar-lhe assim), reparti-a honestamente, entendei-vos e ajudai-vos um ao outro, o que me fizestes de mal, isso vós o sabeis, já vos perdoei há muito, a ti irmão Karl agradeço particularmente a dedicação que por mim tens demonstrado nos últimos tempos, o meu desejo é que tenhais uma vida melhor e com menos preocupações que a minha, recomendai aos vossos filhos a virtude, apenas ela poderá dar felicidade, não o dinheiro, falo por experiência própria, foi ela que me ergueu da miséria, só a ela devo, como à minha arte, não ter terminado em suicídio a minha vida - adeus e amai-vos um ao outro -

(...)

Heiligenstadt, 6 de Outubro de 1802
Ludwig van Beethoven 

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