07 setembro 2023

Da necessidade de uma certa profundidade

 Na 2ª feira desta semana, ao fim da tarde, li um livro que falava (também) sobre o suicídio de alguém: mencionava o drama, as dúvidas sobre se seria de facto um suicídio, a aparente surpresa, a necessidade de se contar uma história, aquilo que terá falhado para ninguém se ter apercebido, o que a pessoa terá feito antes do trágico momento. Nesse dia, duas horas mais tarde, recebo um whatsapp de uma amiga do meu voluntariado internacional. Um amigo / colega francês, pai de uma criança que morrera há 15 anos, talvez, e muito activo nesta comunidade, acabara de se suicidar, perante a incredulidade (para além do choque) de muita gente próxima. No dia seguinte, ao perguntar se se sabiam os motivos para esta tragédia, escreveram-me:

He has had a bad time but he seemed to be recovered. He had changed the city and the work and seemed to be happy. No one noticed anything strange.

Podia falar sobre esta sincronicidade: no mesmo dia, no espaço de poucas horas, leio e leio sobre dois suicídios. Mas não é isso que me impele à escrita. Em ambos os casos, a incredulidade e o choque surgem de braço dado. Não é apenas o choque perante uma tragédia; é também a incredulidade perante a tragédia: no one noticed anything strange. Ou há gente distraída, ou há gente que disfarça bem, ou há um comportamento que me suscita estranheza. Não se nota nada numa pessoa que pode vir a cometer suicídio nos cinco minutos seguintes ou nos dois dias seguintes?

Mal comparado, esta incredulidade - ou espanto, não sei - assemelha-se às entrevistas que fazem aos vizinhos de serial killers, ou de pessoas que vem a saber-se mantinham famílias em caves: nunca ninguém notou nada de estranho, era tudo gente afável que passeava um cão ao fim da tarde. E no entanto, por trás desta afabilidade de quem passeia cães ou da normalidade de quem tem uma vida minimamente saudável, esconde-se um assassino em série ou uma pessoa profundamente angustiada para quem a única solução é matar-se. Obviamente não comparo as pessoas, embora ambas fossem portadoras de uma dor interior insuportável ou desencadeadora de uma grande violência. O que me surpreende é a nossa surpresa. Porque é que não conseguimos ver o que se passa dentro destas pessoas?

Este meu conhecido / amigo que se matou era um homem relativamente novo, bem disposto, com quem eu conversava pouco, mas que encontrava numa ou noutra reunião internacional. Gostava de saber o que o levou a isto, não por uma curiosidade mórbida, mas para perceber melhor a alma humana. Ouvira dizer que se divorciara, que havia um problema com uma filha, que mudara de emprego e de cidade. E perdera um filho pequeno para o cancro, há 15 anos, talvez. Houve um momento determinante, um episódio determinante, um somatório de factores? Gostava de compreender tudo, não para perdoar tudo, como diria Tolstói, mas para nunca poder dizer perante uma tragédia: No one noticed anything strange.

A vida é cada vez mais volátil.

JdB   

2 comentários:

Anónimo disse...

https://www.noticiasmagazine.pt/2019/depressao-atipica-o-que-escondem-os-sorrisos/bem-estar/236833/

Quem sabe ...

JdB disse...

Obrigado.

Talvez a expressão "há sorrisos que matam" seja demasiado cruel. E não obstante...

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