No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro e viu a pedra retirada do sepulcro. Correu então e foi ter com Simão Pedro e com o discípulo predileto de Jesus e disse-lhes: «Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram». Pedro partiu com o outro discípulo e foram ambos ao sepulcro. Corriam os dois juntos, mas o outro discípulo antecipou-se, correndo mais depressa do que Pedro, e chegou primeiro ao sepulcro. Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou. Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira. Entrou no sepulcro e viu as ligaduras no chão e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não com as ligaduras, mas enrolado à parte. Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: viu e acreditou. Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.
Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado, Como quem deixa à porta o saco para o pão. Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado. O que for, assim seja, à tua mão. Tua vontade se faça, a minha não.
Senhor, abre ainda mais meu lado ardente, Do flanco de teu filho copiado. Corre água, tempo e pus no sangue quente: Outro bem não me é dado. Tudo e sempre assim seja, E não o que a alma tíbia só deseja.
Se te pedir piedade, dá-me lume a comer, Que com pontas de fogo o podre se adormenta. O teu perdão de Pai ainda não pode ser. Mas lembra-te que é fraca a alma que aguenta: Se é possível, desvia o fel do vaso: Se não é, beberei. Não faças caso.
Em vésperas do Natal de 2021, um conjunto de produtores espanhóis e um português (Luís Matta de Almeida) lançaram um filme de animação sobre uma criança com um sonho improvável, uma condição difícil (para a maioria, incapacitante), mas uma vontade férrea e uma avó inspiradora, ou melhor, uma avó que a olhava com especial afeição, fazendo-a reconhecer-se única pelos melhores motivos. Aquela neta de olhos rasgados e minúsculos, por detrás de uns óculos redondos gigantes, chamava-se Valentina e sonhava ser trapezista. Mas atrapalhava ter síndrome de Down.
As peripécias por que passa, bem acompanhada por amigos fiéis (brinquedos incluídos) e uma família estimulante, levaram Valentina a acreditar que seria capaz de concretizar os desejos mais ousados, até para crianças sem a sua anomalia cromossomática. As inúmeras incursões musicais e coreográficas do filme acentuam o tom construtivo do argumento, percebendo-se que flui sob um horizonte de infinitas oportunidades, alimentadas e viabilizadas pela ternura que envolve a protagonista:
A dobragem para o italiano teve um requinte especial, porque a voz da heroína foi assumida por uma estudante de design gráfico com síndrome de Down – Alice di Gennaro – a primeira pessoa da sua condição a dobrar desenhos animados. A agenda muito concorrida de Alice confirma quanto a sua disfunção não a impede de ter um dia-a-dia cativante, ao jeito da sua idade.
Alice di Gennaro também aposta alto e sonha ser cantora, modelo, influencer.
As estatísticas sobre as crianças com trissomia 21 são demasiado expressivas para poderem ser ignoradas. No mundo contabilizam-se 5 milhões e 400 mil pessoas e em Portugal conhecem-se 15 mil casos.
Felizmente, na multiplicação de efemérides em que a ONU é perita, fez-se coincidir o início da Primavera com o Dia Internacional da Síndrome de Down – 21 de Março – instituído, em 2012, pela Assembleia das Nações Unidas. Felizmente que o aborto (vigente em inúmeros países) não conseguiu erradicar estas crianças do planeta. Ironicamente, era um dos objectivos do programa nazi de purificação da raça e descarte dos mais vulneráveis. Felizmente que, há várias décadas, ter trissomia 21 deixou de ser um estigma para a família e as crianças passaram a aparecer em público, com naturalidade. Felizmente que, no Ocidente, estas crianças podem frequentar o ensino normal, de modo a mitigar as suas dificuldades cognitivas e conseguir saídas profissionais válidas. Felizmente, há maior predisposição para reconhecer igual dignidade em cada indivíduo, mesmo os mais diferentes, reconhecendo que também eles são habitados por esperanças, desejos, talentos e fraquezas, merecedores de todo o apoio. Toda a sociedade sai beneficiada com a maior abertura à diferença, empenhando-se em ajudar cada qual a crescer, segundo as suas capacidades e características. Especificamente, os avanços na compreensão da trissomia 21 permitiram aumentar a longevidade média para os 60 anos, quando nos anos de 1980 rondava os 25!
O testemunho feliz de um miúdo brasileiro de 5 anos, ao colo da mãe, mostram a beleza que qualquer situação humana pode comportar. O vídeo emocionou o Brasil e inúmeros famosos comentaram-no, como a cantora Ivete Sangalo, que partilhou estas linhas: «Mães que transformam! Um vídeo maravilhoso para nos dizer o quanto o amor vê além»:
Quantas vezes, são estas crianças os elementos mais divertidos e sociáveis da família, com maior apetência para se relacionar com todos, imunes a entraves e preconceitos sociais? São, pelo menos, um sinal vivo de uma réstia de humanidade que persiste nas sociedades competitivas, onde é demasiado forte a tentação de descartar os menos produtivos, como tem alertado o Papa Francisco. Em meados do século XX, o grande (e heróico) geneticista francês Jérôme Lejeune dava o seguinte conselho aos pais das Valentinas: o que poderão perder em comodidade, vão centuplicar em humanidade! Ao invés, as cedências ao utilitarismo e a supostos ganhos de eficiência criam uma espiral de desumanização, em que, tarde ou cedo, todos seremos descartáveis, i.e., alvos a abater.
A propósito de desmontar estereótipos segregadores e redutores: que lugar nos caberia no cortejo do Crucificado? Teríamos olhos para descortinar a verdade mais profunda e menos evidente no rosto desfigurado e, por isso, difícil de encarar do último dos Condenados? Ou nas Valentinas também diferentes ou nos milhões de enjeitados do planeta, de aspeto menos atraente? Somos um mundo estranho, capaz de alunar e desbravar o cosmos, mas incapaz de acabar com a pobreza e de reintegrar os proscritos da abundância.
Conseguiremos alcançar toda a verdade contida na interpelação híper lúcida do poeta e diplomata brasileiro Guimarães Rosa: «Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo»? Aplica-se na perfeição a muitos dos que subiram até ao Calvário sem nada entender, naquela Sexta-feira tornada santa por um dos Réus. Talvez os parias, especializados em humilhações, calhem ser dos primeiros a conseguir vislumbrar algum sentido na humilhação suprema de uma morte na cruz. Aquela teve o especial dom de ser aceite e vivida por amor. Apenas por amor, numa medida infinita, que é a medida de Deus. Esse amor, que costuma inspirar uma paz expectante perpassa na magnífica tela de Domingos Sequeira «Descida da Cruz», recentemente comprada pela Fundação privada Livraria Lello, que aceitou emprestá-la ao Estado português para ficar (temporariamente) exposta em museus nacionais:
«Descida da Cruz» (1827) - do quarteto de telas sacras executadas por Domingos Sequeira (1768-1837), em Roma. Súmula biográfica do pintor considerado a mais talentoso da sua geração: de ascendência pobre, foi educado na Casa Pia, onde frequentou o curso de Desenho e Figura. Seguiu para Roma com uma bolsa de estudo concedida por D. Maria l, onde cursou pintura com Antonio Cavallucci. De volta a Lisboa, foi nomeado pintor da corte pelo futuro rei D. João VI, ficando corresponsável pela pintura do Palácio da Ajuda e professor de Desenho e Pintura da Família Real. Durante as invasões napoleónicas, tornou-se amigo de oficiais franceses, como o Conde de Forbin, o que lhe valeu a encomenda da famosa tela de Junot a proteger Lisboa (1808). Tais amizades levaram-no a ser alvo de condenações posteriores, de que se reabilitou a custo. Viveu os últimos anos em Roma, dedicando-se à pintura sacra. [dados no site do Museu Soares dos Reis, onde está a tela de homenagem a Junot].
Impressiona as portas da Salvação da humanidade terem sido escancaradas pelo mais humilhado dos homens. Como observava lapidarmente Paulo de Tarso sobre aquela insólita escolha, que não cabe nos critérios humanos: é «escândalo para os judeus e loucura para os gentios». Ainda hoje se mantém repugnante para muitos, misteriosa para todos, mas incontornável e salvífica para quem se deixe tocar pelo Crucificado.
Santa Páscoa, sob o mistério do Amor infinito e inexplicável de Jesus por nós (em grande medida, experimentado pelo pequeno Marcelinho), olhados e amados para lá dos nossos erros, reincidências desengraçadas e injustas…
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA
Título original: Valentina
Título traduzido em Portugal:Valentina - despertando para os sonhos
Realização: Chelo Loureiro
Argumento: Chelo Loureiro e Lúa Testa
Produzido por: Chelo Loureiro, Luís da Matta Almeida, Brandán de Brano, Mariano Baratech e Noa García
Estúdios: Abano Producions, El Gatoverde, Antaruxa e Sparkle Animation
Banda Sonora: de Nani Garcia
Duração:1h10
Ano: 2021 (Dez.)
Países de origem:Espanha e Portugal
Elenco:
Vozes de: Jeanne Metivier (Valentina), Laetitia Casta, Eric Mie
Prémios (em 2022): Melhor Filme Animado pelo CEC Award, vencedor do Prémio Goya na categoria de Animação.
- Eu sou um merda!- Gritara Paulo, sem largar o meu rosto. - Merda sou eu! - Gritara o Tiago. - Sabe o que que eu sou? - Merda sou eu! - Insistira Paulo. - Sabe o que eu sou? Um fracassado. Pronto. - Merda sou eu! - Eu sou um merda fracassado. Sou mais merda que você. Paulo largara meu rosto e agarrara a cabeça de Tiago. - Eu sou mais merda do que vocês todos! - Porquê? - Porque eu era melhor do que vocês todos. Eu era o melhor de todos! Pra vocês chegarem a merda, não precisou muito. Eu, sim, tive que cair. Eu é que sou mais merda.
Luís Fernando Veríssimo (in O Clube dos Anjos, pg. 35)
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(...) e as igrejas, as lojas, os homens, sendo por toda a parte iguais, não vale a pena partir para ir apenas e em definitivo, sentir a melancolia infinita que inspiram as multidões estranhas».
Eça de Queiroz (in Correspondência, carta à Condessa de Ficalho, 1885).
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Agora ando nisto: pego em frases ou pensamentos aparentemente desligados entre si e tento encontrar-lhes algo que os junte. Não faço isto como auto-flagelação do tempo que ainda é pascal, mas como treino mental cujo resultado interessa a alguns que me apreciam, a outros que tentam encontrar uma brecha por onde introduzir um lança amavelmente crítica.
Gosto de Luís Fernando Veríssimo, escritor brasileiro que é filho de Erico Veríssimo, e de quem li algumas obras, nomeadamente a referida acima. Gosto ainda mais do Eça, de quem li tudo, parece-me. O que têm as citações em comum, para além de serem a criação de dois grandes escritores? A expectativa, que o dicionário refere como esperança fundada em promessas ou probabilidades e o tombo gerado por essa expectativa. Ou, talvez melhor, a contradição, que é uma forma de expectativa (frustrada). A queda decorrente é mais um lugar-comum para enfeitar um blog de criatividade reduzida à 6ªf. Bastava-nos, para isso, a sabedoria popular do quanto mais alto se sobe maior é a queda.
Paulo é mais merda do que todos, porque era o único que não era merda. Há aqui uma expectativa de sucesso que não se verifica e, nesse sentido, a derrota é maior. Se somos os melhores de todos como nos podemos tornar no mais merdoso de todos? É a expectativa - a contradição. Eça sente e melancolia que inspiram as multidões estranhas. Numa turba não é suposto encontrar-se a melancolia, porque há movimento, agitação, braços que nos tocam, rostos que nos fitam, movimentos que nos impedem de ficar quietos e de sentir a felicidade de estarmos tristes. Há uma expectativa de elevação do contentamento, não a possibilidade de nos sentirmos abatidos por uma multidão estranha. É a queda - a contradição.
A contradição faz tudo por nós: tem uma dimensão pedagógica, pois põe Paulo no sítio onde ele deve estar, que é no lugar do mais merdoso onde ele nunca se veria; tem uma dimensão de encanto, que nos permite sentirmo-nos melancólicos onde deveria haver lugar para o ruído e a alegria. Tem, por fim, uma dimensão de certeza surpreendente: toda a pessoa extrovertida precisa da solidão e toda a pessoa introvertida ficaria louca aqui, na Cartuxa (Padre Isidoro, in O Segredo da Cartuxa).
Porque é que os portugueses são tristes? Porque estão perto da verdade. Quem tiver lido alguns livros, deixados por pessoas inteligentes desde o princípio da escrita, sabe que a vida é sempre triste. O homem vive muito sujeito. Está sujeito ao seu tempo, à sua condição e ao seu meio de uma maneira tal que quase nada fica para ele poder fazer como quer. Para se afirmar, como agora se diz, tão mal. Sobre nós mandam tanto a saúde e o dinheiro que temos, o sítio onde nascemos, o sangue que herdámos, os hábitos que aprendemos, a raça, a idade que temos, o feitio, a disposição, a cara e o corpo com que nascemos, as verdades que achamos; mandam tanto em nós estas coisas que nos dão que ficamos com pouco mais do que a vontade. A vontade e um coração acordado e estúpido, que pede como se tudo pudéssemos. Um coração cego e estúpido, que não vê que não podemos quase nada. Aí está a razão da nossa tristeza permanente. Cada homem tem o corpo de um homem e o coração de um deus. E na diferença entre aquilo que sentimos e aquilo que acontece, entre o que pede o coração e não pode a vida, que muito cedo encontramos o hábito da tristeza. Habituamo-nos a amar sem nos sentirmos amados e a esse sentimento, cortado por surpresas curtas, passamos a chamar amor. E com verdade. No mundo das ausências, onde a tristeza vem de sabermos muito bem o que nos falta, a nós e àqueles que nos rodeiam, a bondade, que nos torna vulneráveis aos sofrimentos daqueles que nos acompanham e nos faz sofrer duas vezes mais do que se estivéssemos sozinhos, é o preço que pagamos por não sermos amargos. É graças à bondade que estamos tristes acompanhados. Há uma última doçura em sermos tristes num mundo triste. Igual a nós.
Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa'
O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos. Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos, para eu escutar, como escutam os discípulos. O Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não resisti nem recuei um passo. Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam. Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio, e, por isso, não fiquei envergonhado; tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não ficarei desiludido.
Fernanda conhecera Alberto e tinha-se apaixonado por tudo: por um cabelo negro despenteado, por uns olhos castanhos em perpétuo movimento, por umas mãos marotas e, não menos importante, por uma cultura geral errática. Na verdade, Alberto, o homem formado em estudos comparatistas, não se lembrava de quem tinha sido o primeiro presidente da república portuguesa, não fazia ideia de quando tinha começado o Verão quente ou o que era a maioria silenciosa, mas sabia, de cor, estrofes inteiras de Os Lusíadas, parágrafos completos de Os Maias e poesias infindas de Fernando Pessoa. Era ainda detentor de outra informação inútil, tal como o número dos sapatos de Cesário Verde ou a alcunha por que era conhecido um tio de Cecília Meireles.
O início da convivência foi fácil - e entusiasmante. Fernanda falava em Alexandre Herculano e Alberto, de olhos em alvo, gemia: Dez anos! ... Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver? Sabes tu o que são mil e mil noites consumidas a espreitar em horizonte ilimitado a estrela polar da esperança e, quando, no fim, os olhos cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrela reluzir um instante e, depois, desfechar do céu nas profundezas do nada? Fernanda abria a boca, espantada, e inquiria: mas sabes isto tudo de cor?
Noutra altura Fernanda, atenta à saúde de Alberto diria: querido, tens os olhos inchados... E Alberto olharia para ela, sorrindo: os meus olhos são uns olhos / e é com esses olhos uns / que eu vejo no mundo escolhos / onde outros com outros olhos / não veem escolhos nenhuns... Fernanda abria a boca, espantada, e inquiria: mas sabes isto tudo de cor?
À medida que o tempo decorria Fernanda começou a cansar-se. Falava numa porta empenada e Alberto declamava Herberto Hélder, referia-se a uma camisola verde e Alberto cantava Pedro Homem de Mello. Imaginou se ele teria uma resposta caso ela mencionasse fezes moldáveis ou urinas carregadas. Alberto era um manancial de erudição - e tornou-se um maçador.
Um dia Fernanda chegou a casa e foi encontrar Alberto a fazer arrumações na cozinha: tachos, panelas, frigideiras, varinhas mágicas, cataplanas. Sentou-se e disse-lhe: entrou hoje um estagiário novo para o serviço, que diz que fez o curso contigo. David Espada diz-te alguma coisa? Alberto olhou para ela e, agitando uma batedeira, citou em voz grave: Todo começo é involuntário. / Deus é o agente, / O herói a si assiste, vário / E inconsciente. / À espada em tuas mãos achada / Teu olhar desce. / «Que farei eu com esta espada?» A batedeira agitou-se no ar e, antes que o culto errático pudesse citar o último verso Ergueste-a, e fez-se., já Fernanda se erguia, de mãos na cabeça. O que fazes tu com essa espada? Experimenta bater claras em castelo, sempre tem alguma utilidade...
Se quiseres fazer azul, pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande, que possas levar ao lume do horizonte; depois mexe o azul com um resto de vermelho da madrugada, até que ele se desfaça; despeja tudo num bacio bem limpo, para que nada reste das impurezas da tarde. Por fim, peneira um resto de ouro da areia do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal. Se quiseres, para que as cores se não desprendam com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado. Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico. Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que possas distinguir entre uma e outra. Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim, iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser, algum dia, imitar o céu.
Formava-se a primeira comunidade de seres humanos na Terra. Só algum tempo depois, já esta comunidade dominava o vocabulário, a construção das frases e a técnica do neologismo, é que surgiu a palavraquotidiano. Até então as actividades eram ocasionais, avulsas, impulsivas: a caça, o cumprimento das necessidades fisiológicas ou a satisfação das pulsões sexuais, a atenção ao céu como lugar geométrico de todos os mistérios. Só algum tempo depois, repete-se, é que oavulsose tornou emquotidiano, e se definiram momentos certos e regulares para as coisas.
Há actividades quotidianas que nos acompanham desde o homem das cavernas, ou desde os homens que começaram por dar sons identificadores às coisas, sons esses que redundaram em palavras que, alinhadas, formaram um todo inteligível que permitiu a comunicação, a troca comercial, o primórdio do afecto. Com o tempo, e com aquilo que pensamos ser a evolução da espécie, o quotidiano foi-se alterando: já não caçamos, mas mantemos o desejo sexual; temos mais hábitos de higiene, mas o céu pode ser apenas, e só, a folha de papel onde plasmamos mistérios: projecções matemáticas, tendências probabilísticas, caracterização das núvens.
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A tecnologia relativamente barata e ao alcance de um dedo gerou milhões infindos de fotografias nos últimos 20 ou 30 anos. Fotografaram-se as crianças na praia, no banho, na primeira festa, no primeiro jogo de futebol; fotografou-se a namorada, o primo, o almoço de sardinhas assadas numa mesa gordurosa, o desafio do Sporting, a festa de Carnaval, ou ainda Chicago, esse espectáculo de amor e traição que alguns colégios fantasiaram pelo Natal; fotografou-se uma fralda cheia de cocó que se mandou à mãe de férias, a boca suja da primeira sopa de legumes, a viagem de comboio pela Europa com aromas de suor, má comida e desejos de jovem adulto; fotografou-se o grupo de amigos bêbedos, as amigas com ar provocante, as roupas práticas e ligeiras que mataram uma certa elegância feminina. Por último, cada um fotografou-se a si próprio: num grupo a rir, mascarado de fantasia, com adornos de photoshop, em frente de uma cascata tropical, de uma igreja rococó ou de um prato pejado de calorias e triglicéridos. Tudo se fotografou, ninguém deixou de ser fotografado. Milhões e milhões de fotografias sem direito ao esquecimento a circular no éter, a revelar um quotidiano moderno, semi-líquido, volátil, prático, existente.
Por motivos que não vêm ao caso, andei de roda de fotografias relativamente antigas, com 50 ou 60 anos, talvez - muitas antes ainda de eu existir. São de uma época em que a tecnologia se revestia de uma máquina cara, usada em momentos específicos, porque o resto não interessava ser fotografado - havia o custo da fotografia, mas havia, também, uma certa sensação resguardada das coisas.
Imaginemos que o tempo passado só poderia ser decifrado por meio de escritos e de imagens da época e que, munido desses artefactos, decifrávamos um estilo de vida. Olho para aquelas fotografias que fui retirando avulsas de uma caixa e o que encontro? Elegância, cuidado, pouco improviso; mas também encontro uma certa gravitas, uma adultez precoce face aos nossos tempos. Não são fotografias do quotidiano, mas fotografias de festas, de jantares, de comemorações, de encontros. São fotografias que permitem recordar uma certa estética, mais do que uma certa realidade.
Entre o quotidiano do homem das cavernas e o quotidiano do século XX a diferença está, essencialmente, no pudor. Mantêm-se os desejos, as pulsões, as necessidades de sustento, o céu como interrogação, o projecto de amor. Mudou a forma e, nalguns casos, o espaço desse mesmo quotidiano. O que mudou para o século XXI? A tecnologia que permite revelar tudo, a vontade humana que pretende mostrar tudo. As fotografias que eu vi não eliminavam a existência do quotidiano - o bebé de boca suja, o cocó na fralda, a sardinhada gordurosa, o desejo carnal, a informalidade de uma noite mais excessiva. As fotografias que eu vi revelavam, acima de tudo, a importância das coisas, não a existência das coisas.
Naquele tempo, alguns gregos que tinha vindo a Jerusalém para adorar nos dias da festa, foram ter com Filipe, de Betsaida da Galileia, e fizeram-lhe este pedido: «Senhor, nós queríamos ver Jesus». Filipe foi dizê-lo a André; e então André e Filipe foram dizê-lo a Jesus. Jesus respondeu-lhes: «Chegou a hora em que o Filho do homem vai ser glorificado. Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-á, e quem despreza a sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna. Se alguém Me quiser servir, que Me siga, e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo. E se alguém Me servir, meu Pai o honrará. Agora a minha alma está perturbada. E que hei de dizer? Pai, salva-Me desta hora? Mas por causa disto é que Eu cheguei a esta hora. Pai, glorifica o teu nome». Veio então uma voz do céu que dizia: «Já O glorifiquei e tornarei a glorificá-l’O». A multidão que estava presente e ouvira dizia ter sido um trovão. Outros afirmavam: «Foi um Anjo que Lhe falou». Disse Jesus: «Não foi por minha causa que esta voz se fez ouvir; foi por vossa causa. Chegou a hora em que este mundo vai ser julgado. Chegou a hora em que vai ser expulso o príncipe deste mundo. E quando Eu for elevado da terra, atrairei todos a Mim». Falava deste modo, para indicar de que morte ia morrer.
Uma reflexão magnífica, partilhada por mão amiga, interpela-nos sobre o papel que a arte deveria ter no currículo escolar, sendo quase omissa. Com a autoridade de quem está associado a colégios de renome, desde há vários séculos, saberá avaliar como poucos o real impacto destas interrogações e recomendações.
No argumentário apresentado, a arte surge como meio para se atingir um conjunto amplo de objectivos pedagógicos, em geral, de natureza mais subtil e profunda do que a transmissão pura e dura de novos conhecimentos.
Para vários dos objectivos visados poder-se-iam acrescentar outros métodos complementares como, por exemplo, uma maior interacção com a natureza. É eloquente a tradição (hoje, em desuso) em países germânicos e nórdicos de incumbir crianças de tenra idade do cultivo de plantas ou do cuidado de animais domésticos. Tratava-se de uma tarefa responsabilizante e não de um hobby ligeiro e inconsequente. Aliás, era frequente exigirem-se resultados, havendo relatos autobiográficos sobre os castigos aplicados aos pobres filhos, quando uma planta, por exemplo, não medrava capazmente. Em muitos dos reinos e Estados que vieram a integrar a Alemanha, no século XIX, assim como na Áustria, era comum haver gaiolas de madeira decorativas penduradas nas janelas dos quartos das crianças, bem visíveis da rua, para exibir os pássaros que estavam ao cuidado dos seus pequenos donos. Quem tinha jardins costumava consagrar um canteiro à responsabilidade da miudagem. Ressalvando os exageros, os perfeccionismos ou, pior ainda, os pretextos para a agressividade paterna/materna com os mais novos, percebe-se que persistem inúmeros aspectos onde a educação escolar e familiar tem enorme potencial de enriquecimento. Mas para lá das melhores receitas didácticas, o principal factor-chave de sucesso na educação continuará a residir e depender das pessoas envolvidas – educandos e educadores – como a História confirma com clareza meridiana.
«A arte é urgente
O que andamos a perder por relegarmos a arte para segundos e terceiros planos (ou para plano nenhum)? Ou, pela positiva, o que é que poderíamos ganhar se déssemos espaço à arte?
Não sou um entendido de arte, estou longe de o ser. Nem sequer me parece que tenha uma sensibilidade particular ou mais apurada do que a média das pessoas que pisam este mundo. No entanto, considero que a arte é urgente. Tão urgente como a matemática e a engenharia.
Pergunto-me muitas vezes porque razão no nosso sistema educativo não é dada a mesma importância à educação visual, à literatura, à pintura, à música, que é dada à matemática, ao português, à ciência, à fisico-química. Porque razão consideramos a arte como matéria secundária? O que é que isto diz da forma como olhamos para nós próprios, para a vida e para o mundo? Não significará que o nosso olhar se tornou demasiado técnico e que as nossas preocupações se prendem sobretudo com questões de eficácia e de produtividade? É assim queremos viver?
E ainda mais importante: o que é que andamos a perder por relegarmos a arte para segundos e terceiros planos (ou para plano nenhum)? Ou, pela positiva, o que é que poderíamos ganhar se déssemos espaço à arte?
A atenção e o tempo
A atenção é um bem preciosíssimo, porque é aquilo capaz de nos ancorar ao presente. Nestes tempos que vivemos, a nossa atenção é alvo de uma competição feroz e, geralmente, muito bem sucedida. Vivemos muitas vezes atentos ao que não interessa, que é o mesmo que dizer: vivemos desatentos.
A arte é, sobretudo, atenção. É a capacidade de olhar com intenção, é a capacidade de o olhar se demorar. É uma rebelião contra a voracidade. A arte ensina a atenção.
Mas desaprendemos a demorar-nos. Tornámos a espera numa fraqueza nossa, como se fosse necessariamente algo a combater.
Temos publicado no instagram da @provocasj uns vídeos com umas canções originais e é assustador ver as estatísticas das visualizações: a percentagem de pessoas que chega aos seis segundos de vídeo ronda os 50%. Independentemente da qualidade da canção, aguentar apenas seis segundos é nem sequer dar hipótese! Não me parece nada sustentável viver com um spam de atenção de seis segundos.
A profundidade
Sem tempo não existe profundidade. A profundidade precisa de tempo. Não são precisos mais do que uns segundos para nos darmos conta da vastidão do nosso mundo interior, do nosso avesso, mas são precisos muitos anos (provavelmente a vida toda) para entrarmos nessa vastidão.
A arte é uma porta de entrada na profundidade, é uma linguagem que procura decifrar o avesso das coisas. A arte dá-nos vocabulários e gramáticas para lermos a vastíssima experiência humana que não fica à superfície e para olharmos as coisas a partir da profundidade.
A tensão das perguntas não respondidas
Temos dificuldade em conviver com o inacabamento e com a incerteza. Preferiríamos banir da nossa vida tudo o que é fonte de dúvida. Gostaríamos de poder controlar a existência e ter as respostas certas de antemão, sem corrermos o risco de falhar. Inevitavelmente vivemos na tensão das perguntas não respondidas e estas perguntas não serão respondidas da mesma forma que se resolve uma conta matemática.
A arte não tem medo de habitar esta tensão. Não tem a pretensão de resolver a vida de uma forma simples e mágica, mas cria espaço para que a incerteza e a dúvida sejam acolhidas como companheiras de caminho. A arte sabe ver a beleza da imperfeição das coisas e das perguntas por responder.
O silêncio
A ausência de silêncio é, talvez, das maiores perdas dos tempos recentes. Existe hoje uma incapacidade muito maior para enfrentar o silêncio e o que de bom e de duro o silêncio traz. Tenho medo que vivamos enterrados em analgésicos que contornam o silêncio e a possibilidade de escutar o lado de dentro da vida.
A arte ensina o silêncio, de alguma forma, convoca-o e exige-o. É evidente que posso ir ao Louvre e tirar uma selfie com a Monalisa, mas para ver bem e para ouvir bem é preciso silêncio. De outro modo, eu estarei a tapar a vista do que vejo e a gritar-me ao ouvido do que ouço. Com o seu silêncio, a arte ajuda-me a tirar-me da frente e a escutar verdadeiramente o que me está a ser dito.
A imaginação e a criatividade
Sustento a tese de que, por vivermos inundados de imagens e de estímulos, a nossa imaginação empobreceu-se e a nossa criatividade está entorpecida. Sermos bombardeados continuamente de imagens e ruído ocupa muito espaço. Dá a sensação de que estamos a ser constantemente entretidos e que já não há espaço para o tédio e para o aborrecimento.
Acredito que uma parte da arte nasça do tédio, deste espaço que se abre, que não está ocupado, onde há lugar para o novo. Parece-me que todos precisamos deste espaço desocupado: não é um lugar fácil para os nossos olhos habituados a tanto espetáculo, mas é um lugar importante para não nos deixarmos viver meramente entretidos.
Não acho que a arte seja entretenimento, diria que é muito mais uma provocação, um confronto, um grito, e, por isso, pode ser incómoda e desconcertante. Mas é exatamente isso que nos diz que a vida é demasiado preciosa para a perdermos em passatempos.
A paixão
Lembro-me bem da paixão que sentia quando, há uns anos, conseguia comprar ou me ofereciam um álbum novo ou quando apanhava na rádio alguma música de que gostava verdadeiramente. Estou bastante certo de que nesse tempo, em que não estava tudo simplesmente disponível ou que não tinha constantemente todas as possibilidades à mão, a minha paixão pela música era incomparavelmente maior. De alguma forma, parece-me que ter tudo disponível e garantido, sempre e em todo o lado, tira valor às coisas e rouba-nos a paixão, torna-nos apáticos, no sentido etimológico da palavra: sem paixão.
Esta “tirania das possibilidades” também nos chega aos olhos e sinto que é hoje muito mais difícil maravilhar-nos com alguma coisa. Porque se estamos em overdose de informação e entretenimento, dificilmente nos conseguiremos deter para saborear o que quer que seja. Tornámo-nos extremamente impacientes.
Ao dar-nos atenção, a arte devolve-nos o olhar das crianças que se deixam assombrar por tudo, para quem tudo é novidade. Devolve-nos gosto pelas coisas simples e vulgares que, para os olhares desimpedidos, ganham a carga de milagres. A arte pode-nos sacudir e acordar-nos de uma vida desapaixonada.
Curiosamente, quase tudo aquilo que foi dito acima poderia ter sido dito em relação à fé e às dificuldades que encontramos hoje para a viver e a transmitir. Tenho a impressão de que o problema não está tanto nos conteúdos nem na forma como evangelizamos. Está no passo anterior: no terreno em que queremos semear, que tem pouco espaço para acolher. Sinto que, muitas vezes, a nossa ação deveria situar-se em criar espaço e disponibilidade nos outros (e em nós): abrir à sensibilidade e ao silêncio, cultivar a atenção e a profundidade, ajudar a ver e a escutar, desenvolver a imaginação e a criatividade para acolher o novo.
Portanto, considero que a arte é urgente, não apenas como forma de expressar a fé, mas também como antecâmara, como preparação do terreno, como lugar de fecundidade.»
P. Duarte Rosado, sj
1 Março 2024 – no portal Ponto SJ.PT
Uma experiência cheia de humor e ironia, levada a cabo há década e meia, expos as incongruências de muitos especialistas em arte, suscitando perguntas sobre aquele conceito e o mundo infindo que lá cabe. Tudo começou pelo convite a 12 crianças de 2 e 3 anos para colorirem, com as mãos, uma tela em branco. Cumprida a primeira tarefa, o quadro preenchido a manchas policromáticas foi sorrateiramente pendurado numa parede da célebre feira de arte contemporânea europeia – a ARCO de Madrid. Depois, gravaram-se os comentários estarrecedores (para dizer o menos) do público erudito, entre artistas e galeristas, q.b. reveladores dos equívocos a que a pintura dita abstracta se presta:
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Em Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro (algumas delas) diz Fernando Pessoa, pela boca de Álvaro de Campos:
Há frases repentinas, profundas porque vêm do profundo, que definem um homem, ou, antes, com que um homem se define, sem definição. Não me esquece aquela em que Ricardo Reis uma vez se me definiu. Falava-se de mentir, e ele disse: «Abomino a mentira, porque é uma inexactidão». Todo o Ricardo Reis — passado, presente e futuro — está nisto.
Talvez não fizesse mal aos políticos com um certo sentido de humor lerem Álvaro de Campos. Nada me cansa mais do que ouvir pessoas a dizerem que são optimistas, que acreditam no próximo, que são pela verdade ou que são muito francos. Nada me cansa mais do que ouvir pessoas falarem sempre bem de si próprias, não porque, em bom rigor, se sintam muito boas, mas porque sentem que ninguém acredita nelas se elas disserem quem? Eu? Eu sou um pessimista... A mim levava-me às urnas alguém que dissesse com transparência: abomino a mentira, porque é uma inexactidão. Não abomina a mentira porque não está certo, mas porque é uma inexactidão. A cereja em cima do bolo seria a invectiva contra as histórias de crianças: não gosto da Cinderela; há ali uma inexactidão que me incomoda.
Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos: «Assim como Moisés elevou a serpente no deserto, também o Filho do homem será elevado, para que todo aquele que acredita tenha n’Ele a vida eterna. Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele. Quem acredita n’Ele não é condenado, mas quem não acredita já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus. E a causa da condenação é esta: a luz veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque eram más as suas obras. Todo aquele que pratica más ações odeia a luz e não se aproxima dela, para que as suas obras não sejam denunciadas. Mas quem pratica a verdade aproxima-se da luz, para que as suas obras sejam manifestas, pois são feitas em Deus.
A convite de pessoas que me são próximas, voltei a Olivença este ano, desta vez para assistir a 3 corridas - uma das quais uma novilhada, de cujo cartel fazia parte um português chamado Tomás Bastos.
Ir aos toiros a Olivença é fazer uma espécie de peregrinação sem promessas, mas com desconforto. Começo pelo desconforto.
Na verdade, só lá vai quem gosta muito: a praça é acanhada, num bocado de pedra (onde nos assentamos) onde nem um rabo cabe, tem de caber um rabo mais os pés da pessoas que está a trás de nós. A estática e os movimentos - os nossos, os dos que estão à nossa frente e os dos que estão atrás de nós - têm de ser síncronos, isto é, temos de abrir as pernas para que o vizinho da frente se encaixe, temos de confiar que a pessoa atrás de nós abra as pernas, para que nós próprios nos encaixemos. Quando nos levantamos, convém que todos o façam em simultâneo, para não haver desequilíbrios.
Uma corrida de toiros é um espectáculo a que se deve assistir em silêncio, para permitir a concentração de toiro e toureiro. No entanto, há pessoas que falam, que gritam, que desconcentram os intervenientes. Há os que o fazem por ignorância, há os que o fazem por excesso de álcool no sangue.
O reverso da medalha deste desconforto é a convivência com uma certa tribo, como se fossemos todos iguais nesta peregrinação a um local de devoção. As pessoas perguntam-se de onde são (metade dos espectadores são portugueses) fazem graça com isso. Um local à nossa frente ofereceu-nos vinho, queijo e chouriço, o outro disponibiliza um chapéu de chuva. Fazemos todos parte de uma certa irmandade que suporta o frio, a chuva e o desconforto em nome de um espectáculo que faz parte de uma cultura, seguramente, mas que está longe de ser popular. Quem lá vai é aficionado, companheiro da mesma peregrinação.
Para mim, o reverso da medalha do desconforto (dois conhecidos portugueses compraram três bilhetes para ficarem mais à vontade) é, também, o ritual inerente a uma corrida de toiros: a superstição, a forma de andar ou de colocar o queixo, a maneira de atravessar a arena arrastando um capote, um sem número de pormenores que faz parte daquela festa, que empresta à coreografia que há em tudo um pormenor que nem sempre é percebido - ou valorizado.
Tal como referi acima, uma das corridas a que assisti era uma novilhada; isto é, não se tourearam toiros com 4 ou 5 anos, mas novilhos com 3 anos, com tudo o que isso representa de diferença em termos de peso e bravura. Falamos, no entanto, de animais com 400 e muitos quilos. Em Portugal um novilheiro tem de ter pelo menos 16 anos. Tomás Bastos, o novilheiro português que se estreou em Olivença com picadores, deverá ter 17 anos, a mesma idade dos seus colegas de cartel.
Na fotografia, um deles a executar uma sorte de gaiola, que consiste em receber o novilho (ou toiro) assim que ele sai dos curros.
São as meninas dos Correios, como numa dada altura eram as meninas dos Telefones. Sei do que falo, porque me dirijo amiúde ao posto mais próximo que tem um quadro de pessoal exclusivamente feminino. Compro selos, peço estampilhas de correio azul, levanto cartas registadas, atento nas últimas publicações. A menina lá está, fardada, com uns óculos tristes, um cabelo aloirado e desinteressante, um olhar irrequieto e envergonhado. Recebe simpatias com uma cara que ruboresce, enfrenta uma observação com desculpas que tendem para infinito.
Esta menina dos Correios é uma rapariga nova, pintada de forma displicente, que poderia usar um letreiro em forma de súplica: não olhem para mim, finjam que eu não existo. Chama-se Clotilde e é filha de uma professora primária e viúva precoce de um motorista da Câmara Municipal. Convicta da irreversibilidade do estado civil, a senhora devotou-se por inteiro aos meninos, a quem transmitiu valores que formam as mentes e salvam as almas. Clotilde cresceu entre um aviso de recepção e um luto permanente, com uma Mãe que assumiu um pensamento constante: para onde caminhas tu, com esse feitio tímido e invisível?
Um destes dias levaram-me a um recinto no lado oriental da cidade, recuperado para uma malta mais alternativa, desta que não se revê em lado nenhum da noite – ou que quer tudo em simultâneo. Celebrava-se o dia de África, pelo que o estabelecimento era o continente negro copiado e colado na União Europeia.
Numa das salas dançava-se o kizomba: pernas que cruzam, ancas que roçam lateralmente para depois encaixarem de frente; a sensualidade, os cheiros, o ambiente, os sotaques, as saudades das noites africanas, do pôr-do-sol e do espaço sem fim. À minha frente, uma mancha negra movimentava-se ao som de uma toada ritmada e lasciva. No meio da pista, com um menear irrepreensível do corpo, uns cabelos loiros a revelarem cuidado, e uma saia curta que mal tapava umas pernas esguias, vi a Clotilde, esquecida dos carimbos e das encomendas, da franquia e do registo, a descobrir uma África que só conhece da TV Cabo. Com ela, um jovem negro com mais de 1,90 que lhe percorre o corpo como um alfaiate afaga uma peça de caxemira: com um vagar sensorial, de mão aberta e a toda a extensão do pano.
Quando saí, ainda a vi beijando o Valter, empregado de uma oficina na margem sul - um beijo longo, húmido, carregado de desejo e erotismo, de fluidos trocados e cor de pele contrastante. O rapaz sente no corpo da Clotilde a geografia africana e mata as saudades com o tacto, porque a lonjura é uma cegueira, e mão que não toca é alma que não sente. Para ela, que tem o horizonte visual de um balcão ao nível dos olhos, o mecânico é um canal de viagens com interacção erótica.
No dia seguinte a jovem voltará a ser a mesma menina do Correio, tímida, envergonhada, com uma farda estilizada e um cabelo démodé. Almoçará jardineira de vitela com uma Mãe que fala de Deus às crianças – sendo que a inversa também é verdadeira. Engolirá, nostálgica, um pedaço de carne, porque é, também, de nostalgia que se faz a pergunta guardada num coração dividido: sabes fazer moamba, mamã?
Conheço-a bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.
Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no templo os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas e os cambistas sentados às bancas. Fez então um chicote de cordas e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois; deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou-lhes as mesas; e disse aos que vendiam pombas: «Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai casa de comércio». Os discípulos recordaram-se do que estava escrito: «Devora-me o zelo pela tua casa». Então os judeus tomaram a palavra e perguntaram-Lhe: «Que sinal nos dás de que podes proceder deste modo?» Jesus respondeu-lhes: «Destruí este templo e em três dias o levantarei». Disseram os judeus: «Foram precisos quarenta e seis anos para se construir este templo e Tu vais levantá-lo em três dias?» Jesus, porém, falava do templo do seu corpo. Por isso, quando Ele ressuscitou dos mortos, os discípulos lembraram-se do que tinha dito e acreditaram na Escritura e nas palavras que Jesus dissera. Enquanto Jesus permaneceu em Jerusalém pela festa da Páscoa, muitos, ao verem os milagres que fazia, acreditaram no seu nome. Mas Jesus não se fiava deles, porque os conhecia a todos e não precisava de que Lhe dessem informações sobre ninguém: Ele bem sabia o que há no homem.