05 fevereiro 2025

O Fado, canção de vencidos

Muito se tem falado da Mouraria - e pelos piores motivos. Mas o bairro popular é mais do que uma questão de segurança ou de imigração desenfreada. É, também, mais do que o destino final de Maria Severa Onofriana. Foi fonte de inspiração para textos ou versos particularmente bonitos, como os que aqui coloco. 

Gabriel de Oliveira assentou praça em 1909 na Marinha de Guerra, tendo concluído o curso de artilheiro. Suzanne Chantal (pseudónimo de Suzanne Yvonne Marie Beaujoin) foi jornalista e romancista, e nasceu em 1909. Não sei se se cruzaram ou não, mas podiam tê-lo feito e ter trocado dois dos mais interessantes textos que se escreveram sobre a Mouraria ou sobre a procissão da Senhora da Saúde. 

Vale a pena ler os versos de Gabriel de Oliveira, a forma como a sextilha a itálico é depois glosada, o primor de algumas expressões, o trocadilho de uma rosa desfolhada que parece que tem virtude. E vale a pena ler o trecho de Suzanne Chantal - 5 linhas sem ponto para que se leia sem parar, porque o ritmo realça a beleza da frase.

JdB

Há festa na Mouraria

Há festa na Mouraria
É dia da procissão
Da Senhora da Saúde
Até a Rosa Maria
Da rua do Capelão
Parece que tem virtude

Naquele bairro fadista
Calaram-se as guitarradas
Não se canta nesse dia
Velha tradição bairrista
Vibram no ar badaladas
    Há festa na Mouraria

Colchas ricas nas janelas
Pétalas soltas no chão
Almas crentes, povo rude
Anda a fé pelas vielas
    É dia da procissão
    Da senhora da saúde

Após um curto rumor
Profundo silêncio pesa
Por sobre o Largo da Guia
Passa a Virgem no andor
Tudo se ajoelha e reza
    Até a Rosa Maria

Como que petrificada
Em fervorosa oração
É tal a sua atitude
Que a rosa já desfolhada
    Da rua do Capelão
    Parece que tem virtude

Versos de Gabriel de Oliveira

***

(...) mesmo as casas fechadas puseram os tapetes nas janelas. Toda a gente se persigna, e a mão do prelado abençoa, no espaço, os bons, os maus, essa multidão de fiéis de Nossa Senhora da Saúde em que se misturam as raparigas, os vadios, os mendigos e o povo da Guia, do Socorro, da Mouraria, que há pouco ainda se reuniam ao crepúsculo para orar em frente duma estátua santa, colocada num nicho, entre uma taberna e um lupanar.

Suzanne Chantal, in A Caravela e os Corvos

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