foi assim:
era inverno..
havia já sete noites que sonhava com elas. não de forma caótica, mas, pelo contrário, de forma marcialmente organizada, como que obedecendo a um ritmo exterior, fulgurante - naquele sentido mais incomum da palavra. sonhava com elas, com método, régua e esquadro, uma por dia (melhor dizendo, uma por noite). em cada noite, assim que adormecia (era o que lhe parecia), logo embarcava num carrossel tingido pelas cores próprias do que é vivo - uma espécie de revisitação dos lugares interiores, romaria estival pelos verões antigos do seu coração. uma, depois outra, depois mais uma, depois mais outra. cada uma delas ocupava uma noite e, como imaginara no tempos antigos em que aladino e sandokan eram ainda sinónimos de maravilhas por vir, havia uma cadência, uma ideia de ordem, uma espécie de mecanismo que, uma vez interiorizado, encontrava o seu próprio sentido. era assim que elas apareciam, com uma regularidade infalível. acordava de manhãzinha invariavalmente exausto, extenuado. era como fazer amor numa espécie de plano interior - obrigava a muito mais coisas do que a forma mais pedestre de fazer amor. todos os dias, melhor todas as noites, uma princesa ocupava o seu espaço, sem pedir licença, usando as suas credenciais, aquele salvo-conduto para a vida que damos a quem entregamos (ou entregámos um dia) o coração. sete eram elas para sete noites. ao contrário do plot bíblico, não havia domingo, o que obrigava a um esforço desumano, sobre-humano, infra-humano - talvez qualquer coisa ainda por inventar mas desesperadamente humana. a cada uma, um cenário interior diferente, obrigando, na noite seguinte, a mudar o cenário, o enquadramento, os actores secundários, a iluminação, todo o set e todo o mood. mas não havia equipa, nunca havia equipa alguma. neste métier 'estamos sozinhos com as coisas que amamos'. e com as coisas que amámos. com ambas. assim passavam os dias, assim se passavam as noites, sempre sempre sempre com um frenesim subterrâneo, como aquele mar a que os marinheiros experimentados chamam 'mar de azeite': à superfície uma calma exasperante, mas, sob essa fina camada de falsa serenidade, correntes subaquáticas letais. calma de morte, por assim dizer. um corrupio, um frenesim, como um dia um político de águas profundas (lá está..) crismou a actividade quotidiana do seu transitório líder. lembrava-se de ter lido isto nos jornais e, ao pensar nisso, ocorria-lhe o facto de os jornais poderem ser oráculos alternativos (ideia desvairada, ao mesmo tempo, como todas as que fazem estremecer).
era inverno..
havia já sete noites que sonhava com elas. não de forma caótica, mas, pelo contrário, de forma marcialmente organizada, como que obedecendo a um ritmo exterior, fulgurante - naquele sentido mais incomum da palavra. sonhava com elas, com método, régua e esquadro, uma por dia (melhor dizendo, uma por noite). em cada noite, assim que adormecia (era o que lhe parecia), logo embarcava num carrossel tingido pelas cores próprias do que é vivo - uma espécie de revisitação dos lugares interiores, romaria estival pelos verões antigos do seu coração. uma, depois outra, depois mais uma, depois mais outra. cada uma delas ocupava uma noite e, como imaginara no tempos antigos em que aladino e sandokan eram ainda sinónimos de maravilhas por vir, havia uma cadência, uma ideia de ordem, uma espécie de mecanismo que, uma vez interiorizado, encontrava o seu próprio sentido. era assim que elas apareciam, com uma regularidade infalível. acordava de manhãzinha invariavalmente exausto, extenuado. era como fazer amor numa espécie de plano interior - obrigava a muito mais coisas do que a forma mais pedestre de fazer amor. todos os dias, melhor todas as noites, uma princesa ocupava o seu espaço, sem pedir licença, usando as suas credenciais, aquele salvo-conduto para a vida que damos a quem entregamos (ou entregámos um dia) o coração. sete eram elas para sete noites. ao contrário do plot bíblico, não havia domingo, o que obrigava a um esforço desumano, sobre-humano, infra-humano - talvez qualquer coisa ainda por inventar mas desesperadamente humana. a cada uma, um cenário interior diferente, obrigando, na noite seguinte, a mudar o cenário, o enquadramento, os actores secundários, a iluminação, todo o set e todo o mood. mas não havia equipa, nunca havia equipa alguma. neste métier 'estamos sozinhos com as coisas que amamos'. e com as coisas que amámos. com ambas. assim passavam os dias, assim se passavam as noites, sempre sempre sempre com um frenesim subterrâneo, como aquele mar a que os marinheiros experimentados chamam 'mar de azeite': à superfície uma calma exasperante, mas, sob essa fina camada de falsa serenidade, correntes subaquáticas letais. calma de morte, por assim dizer. um corrupio, um frenesim, como um dia um político de águas profundas (lá está..) crismou a actividade quotidiana do seu transitório líder. lembrava-se de ter lido isto nos jornais e, ao pensar nisso, ocorria-lhe o facto de os jornais poderem ser oráculos alternativos (ideia desvairada, ao mesmo tempo, como todas as que fazem estremecer).
o livro não era mau, pensou ela. um bocadinho teen talvez, nos seus arroubos emocionais. um estilo algo gongórico (como gostava-abominava esta palavra) a polvilhar a intriga, algum psicologismo exacerbado. mais secura e mão firme, um chicote que amestrasse os fantasmas do escriba, meia-dúzia de cortes cirúrgicos e talvez este livrito fosse não só uma coisa que lhe agradava mas também uma coisa que agradasse aos outros. estava farta de coisas que só a ela agradavam. quer dizer, admitia que tinha uma certa graça ver o mundo do cimo de uma árvore, mas, que diacho, descer cá baixo, roçar as calças pelos tojos e urtigas, beber o vinho dos lírios, sujar as mãos de carvão, dar pulos no ar, trincar maçãs, todas essas coisas tinham o seu encanto. a beleza devastadora do trivial, quando vista de cima, é igual ao seu inverso - como tornar objectiva a relação entre uma coisa e outra, como qualificar uma como melhor ou pior, como estabelecer comparações entre o que se não conhece, o que se não experimenta, o que se não vive? por isso mesmo sempre costumava embirrar com sujeitos com opiniões fortes e convicções pretensamente inabaláveis. olhava para eles com uma certa pena, que, vista de fora, resvalava logo para uma atribuída (mas injusta) arrogância. diziam-lhe que era por ser uma mulher bonita, com aquelas feições esculpidas e um perfil clássico (mais um pouco e a palavra era cinematográfico. ou menos um pouco). a altivez não vinha daí, da sua pose exterior. a altivez não existia, mas, para saber isso, era preciso conhecê-la. e para a conhecer era preciso não ter medo dela. ou não a desejar como ela costumava ser desejável - um troféu inacessível tornado acessível por razões que ninguém procurava exactamente saber.
quando o carro parou, aquela luz azul-acinzentada própria de certos dias de inverno, quando o dia passa testemunho à noite, tomou o seu papel principal. como nos filmes dos quais se diz: 'a natureza ou a paisagem é actor principal'. debaixo de um candeeiro de lata, a imitar pobremente mas com um resquício de dignidade candeeiros de outros tempos, ela era agora uma imagem de hopper (mas de um hopper alternativo, um hopper do basfond - sorria para si própria com estes trocadilhos de linguagem). uma mulher, ainda bonita, recortada contra a meia-luz, envolta na névoa, gabardine garbosa, um periclitante equilíbrio entre o guarda-chuva, o livrinho na não, o cigarro displicentemente arrumado por entre os lábios. o livro de contos que ocupava o seu mundo tinha uma capa negra e, a custo, deixava ler qualquer coisa como 'novos contos de inverno'. ou talvez 'nove contos de inverno'. num bolso lateral da gabardine, espreitava outro livro. parecia ser algo como 'têmporas de cinza' e, desta feita, virtude da mancha gráfica, era possível descortinar o nome do seu autor: 'a. m. cabral'. parecia ser assim, pelo menos.
quando parou o carro, ele sabia o que fazia. e sabia que sabia. uma mulher assim, com aqueles livros - que ainda não sabia, quando tomou a decisão de abrandar e parar, serem exactamente aqueles - não se encontra todos os dias. uma mulher que cheirava a inverno e que, iria perceber não muito mais tarde, sabia a inverno. sempre fora assim, desde miúdo: antes de ter as experiências físicas, terrestres, já o resultado estava nele gravado. seguia cegamente esta espécie de instinto que lhe fazia gostar (ou não) das outras pessoas, sem saber porquê. saber sabia, não sabia era explicar isso, por isso, no mundo normal, era como se não soubesse. no caso das mulheres, era ainda mais fino este seu sétimo sentido. não gostava de falar disso, por pudor. porque o cheiro e o sabor de uma mulher não é articulável. pensava na improbabilidade do que acabara de pensar e sentir e fazer, em micro-segundos; ainda mais, nos pensamentos que o assaltavam durante a curta viagem de carro que acabara de ser interrompida. andava a sonhar com as suas ex-namoradas, com as mulheres da sua vida, uma por dia. ou melhor, pensava para consigo, uma por noite. como se desesperadamente participasse num concurso cujo prémio máximo era saber enfim qual era a certa. ou, e não podia deixar de afastar esta hipótese, como se, de uma maneira oblíqua, se estivesse a despedir. talvez perturbado por este pensamento, a mulher sob o candeeiro, à beira da estrada naquele bairro da cidade sem grande movimento àquela exacta hora, talvez aquela mulher que, mesmo ao longe, se via estar a ler havia captado a sua atenção. naquela zona, ele sabia-o perfeitamente, as prostitutas invadem duas ou três ruas curiosamente recatadas. essa possibilidade bailava nele próprio em paralelo com tudo o resto. mas, talvez mesmo por isso, pensou na beleza de se apaixonar para sempre por uma prostituta que lia contos de inverno. talvez assim os sonhos nocturnos terminassem, talvez assim as suas antigas mulheres descansassem e o deixassem descansar, talvez assim, nessa negação sublime da estatística e do determinismo, ele sentisse coisas novas. ou, simplesmente, se sentisse enfim ele próprio.
o carro arrancou. um desportivo dos anos 50. cromado e vermelho sangue nos sítios certos. ele acendeu-lhe o cigarro, apesar do vento. reparou que ela lia o seu livro, aquele que se esforçava por dizer: isto sou eu, isto sou só eu. e quanto mais dizia, mais os leitores e os críticos e os editores e os tradutores e os revisores e essa malta toda diziam: bem pensado! uma personagem que é o autor, nada mais do que o autor, em exercício de exposição sem rede. bem inventado, sim senhora. quanto mais lhes damos a verdade, maior a lenda que criam à nossa volta. como se isso fosse impossível, como se escrever o que somos fosse um exercício inverosímil, um acto impossível, uma boutade manifestamente artificiosa.
- esperei por ti toda a minha vida.foram estas as primeiras palavras que ela me dirigiu. e foram estas as palavras que mudaram a minha vida. vou contar-vos uma história. a história dela. a minha história também.é uma história de inverno, com uma mulher-fatal, cigarros renitentes, descapotáveis em sangue-vivo, livros a sair dos bolsos.esta história obviamente nunca aconteceu.tal como eu não existo, sou apenas um personagem à solta, que se escapou da algibeira do meu criador.em cada ponta dos meus braços um coração que escreve. e a noção exacta de que nunca acreditarão na história que vos vou contar.
foi assim:
era inverno..
para a sophia o.
gi
1 comentário:
...tiro-lhe o meu chapéu por este belíssimo texto...
(estava a lê-lo e a vizualizar imagens)
pela verdade, pela candura, pela magia, pela criatividade, ...
um abraço,
em cada ponta dos meus braços um coração que escreve
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