Adorada madrinha do meu coração,
Espero que esta a encontre de saúde, que nós por cá todos bem.
Estou certo de que irá ler o Evangelho de hoje. Aproveitemos os poucos momentos que nos restam para meditarmos sobre as escrituras, porque os tempos vindouros são de convite ao consumismo, à abertura das grandes superfícies, à visão, no corredor dos produtos dietéticos, da morte do pequeno comércio e do ressurgimento entusiasmado pela compra de mais uma inutilidade, uma outra linha preenchida na lista da vacuidade utilitária.
À minha maneira, amada madrinha, fui um homem de sorte. Ainda a onda que varrera a doce estabilidade paternal não morrera na areia e eu já encaixotava recuerdos de uma vida profissional e familiar. Voltei a segurar, à altura dos meus olhos desfocados, os despojos de uma época difícil. Os tempos seguintes nem sempre foram fagueiros, apesar de um gestor de conta educado que pouco tinha para me dizer, porque há gente que sente pudor na frase tenha lá paciência, senhor engenheiro...
Talvez a minha sorte tenha começado aí, de alguma forma um corolário de uma educação mais voltada para o sentido do dever do que para o do haver, menos ainda para o do ter, porque expressões como ambição e sucesso só eram, onde cresci, palavras trissilábicas, pronunciadas com um distanciamento nem sempre baseado na convicção, mas na falta dela.
Infelizmente, extremosa madrinha, a vida moderna conduz mais ao sibaritismo do que à ascese, ainda que as expressões sejam exageradas, fruto de uma liberdade criativa a cujo direito me arrogo. O verbo adquirir só no dicionário é que vem depois de abdicar. Mas a vida não é o Hoauiss e, por vezes, só à força - atingidos na ilharga por uma paulada do destino - é que percebemos que podemos viver com menos, com muito menos. Quando então nos libertamos desse vício aquisitivo - por mera dificuldade económica -, somos invadidos por uma profunda sensação de libertação e de proximidade com o Alto que, como bem sabe, tem uma decoração profundamente minimalista: nada de excessos, nada de supérfluos, nada de comparações balofas, porque se espera que os nossos bens cumpram, também, uma função social.
Não me alongo, madrinha querida. Tinha previsto a compra de um telemóvel de última geração, cheio de funcionalidades importantes - o tempo no Ohio, os resultados do campeonato da Ossétia do Sul, a tendência dos mercados bolsistas no longínqua Myanmar - e preciso de sair. A maioria dos meus amigos já tem, e não me fica bem um downgrade comparativo. O que lhe parece?
Termino, oferecendo-lhe um amplexo e um ósculo que me reconfortarão - porque dizem que dar é melhor do que receber. Já me esquecia: hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
alguém, do meio da multidão, disse a Jesus:
«Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança comigo».
Jesus respondeu-lhe:
«Amigo, quem Me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?»
Depois disse aos presentes:
«Vede bem, guardai-vos de toda a avareza:
a vida de uma pessoa não depende da abundância dos seus bens».
E disse-lhes esta parábola:
«O campo dum homem rico tinha produzido excelente colheita.
Ele pensou consigo:
‘Que hei-de fazer,
pois não tenho onde guardar a minha colheita?
Vou fazer assim:
Deitarei abaixo os meus celeiros para construir outros maiores,
onde guardarei todo o meu trigo e os meus bens.
Então poderei dizer a mim mesmo:
Minha alma, tens muitos bens em depósito para longos anos.
Descansa, come, bebe, regala-te’.
Mas Deus respondeu-lhe:
‘Insensato! Esta noite terás de entregar a tua alma.
O que preparaste, para quem será?’
Assim acontece a quem acumula para si,
em vez de se tornar rico aos olhos de Deus».
3 comentários:
JB,
Vivemos de facto tempos difíceis de crise económica, de mudança para outro estilo de vida. Acho que tem razão quando diz que se a maioria de nós faz opções que têm que ver com menos gastos isso não significa que a vontade de comprar não esteja lá mas antes que há menos dinheiro para o fazer. Parece-me que não vai ser possível voltar ao estilo de vida a que nos habituámos até há bem pouco tempo, por razões várias que não valerá talvez a pena aprofundar aqui.
Aqui há dias li um artigo no The New York Times ‘Shoppers on a ‘Diet’ Tame the Urge to Buy’ (http://www.nytimes.com/2010/07/22/fashion/22SIXERS.html?th&emc=th) sobre a possibilidade de nós mulheres limitarmos o nosso guarda roupa a um mínimo e vivermos bem com isso. Vídeo: http://video.nytimes.com/video/2010/07/22/style/1247468489339/six-items-or-less.html. Os Estados Unidos estão a abrir caminho também na mudança de comportamentos e prática de novos estilos de vida. Escolhi este exemplo porque dizerem-nos para não comprar aquele vestido nem aquelas sandálias nem aquelas jeans é…pedir muito.
ML: obrigado pela visita. Estou de acordo consigo, penso também que poderemos estar numa mudança de figurino de estilo de vida. Assim as pessoas aproveitem a tal paulada na ilharga para repensar o consumismo em excesso, a aplicação dos bens, a necessidade de um modelo de vida mais parcimonioso. Obigado ainda pelos links que visitarei assim que possível.
JdB, NÃO podia estar mais de acordo com tudo o que escreveu e com o teor do Evangelho. Shopping on a diet and life in general on a diet (em termos de consumo) mean a lot to me. Especialmente depois da minha temporada indiana... marcou-me para sempre. Anyway, o que queria dizer é que achei a sua carta fabulosa. Adorei a ideia do telemóvel de nova geração com informação sobre o tempo no Ohio e as cotações bolsistas na distante Myanmar... Giríssimo. Obrigada. pcp
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