25 agosto 2010

Vai um gin do Peter’s ?

Quando vasculho as memórias da infância, o fio da memória vai sempre desaguar ao mar, concentrando-se nos três deliciosos meses de Verão na praia, rodeada dos cheiros a maresia e dos caramanchões de plantas que povoam o Pinhal de Leiria, explorado, incansavelmente, na companhia dos meus irmãos e dos amigos de férias. Voltar à infância é também relembrar os livros preferidos dessa idade, escritos pela Sophia (1919-2004).

Nestes dias, à beira d’água, relembro alguns desabafos de «A Menina do Mar», onde a alegria é linda e a tristeza não corrói, porque não é inquinada pelo desespero. A saudade é uma rosa maravilhosa e muito inteira (também com espinhos), que se esconde no coração. Na orla da praia, os seres aquáticos brincam com os da terra e o sol festeja a luz na espuma das ondas. O mundo resplandece de cor e o tempo desdobra-se em milhares de sabores. As meninas são fadas e todos os lugares onde a natureza é rainha, os habitantes são as crianças.

Devo à Sophia a paixão pelos livros e por um mundo impregnado do perfume dos oceanos, pleno de vida e de horizonte, onde os poetas vivem em mansardas, bem perto do céu, e inspiram-se no silêncio da noite.



Diálogos da Menina do Mar com o rapaz, a quem basta ser, dispensando o nome próprio:

«Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar… Nessa casa morava um rapazito que passava os dias a brincar na praia…

Edward Hopper ˆ Orlas marítimas em Cape Cod

(Um dia, o rapaz e a menina) sentaram-se os dois um em frente do outro e (ela) contou:

- Eu sou uma menina do mar. Chamo-me Menina do Mar e não tenho outro nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota trouxe-me no bico para esta praia… Tenho tanta curiosidade da Terra – disse a Menina, - amanhã, quando vieres, traz-me uma coisa da terra.

E assim ficou combinado. No dia seguinte, logo de manhã, o rapaz foi ao seu jardim e colheu uma rosa encarnada muito perfumada. (…) A menina pôs a sua cabeça no cálice da rosa e respirou longamente...

- É um perfume maravilhoso. No mar não há nenhum perfume assim. Mas estou tonta e um bocadinho triste. As coisas da terra são esquisitas. São diferentes das coisas do mar. No mar há monstros e perigos, mas as coisas bonitas são alegres. Na terra há tristeza dentro das coisas bonitas.

- Isso é por causa da saudade - disse o rapaz.

- Mas o que é a saudade? - perguntou a Menina do Mar.

- A saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora.

- Ai! - suspirou a Menina do Mar olhando para a Terra. Por que é que me mostraste a rosa? Agora estou com vontade de chorar.

O rapaz atirou fora a rosa e disse:

- Esquece-te da rosa e vamos brincar... (Repara que a terra) tem lá dentro uma coisa maravilhosa, linda e alegre que se chama o fogo. Vais ver.

E o rapaz abriu a caixa e acendeu um fósforo. A Menina deu palmas de

alegria e pediu para tocar no fogo.

- Isso - disse o rapaz - é impossível. O fogo é alegre mas queima.

- É um sol pequenino - disse a Menina do Mar.

- Sim - disse o rapaz - mas não se lhe pode tocar… Enquanto o fogo é pequeno e tem juízo é o maior amigo do homem: aquece-o no Inverno, cozinha-lhe a comida, alumia-o durante a noite. Mas quando o fogo cresce demais, zanga-se, enlouquece e fica mais ávido, mais cruel e mais perigoso do que todos os animais ferozes.

- As coisas da terra são esquisitas e diferentes - disse a Menina do Mar.

No dia seguinte o rapaz chegou à praia, sentou-se ao lado da Menina do Mar e disse:

- Hoje trago-te uma coisa da terra que é bonita e tem lá dentro alegria. Chama-se vinho. Quem bebe fica cheio de alegria. (…)

- É muito encarnado e muito perfumado - disse ela (pegando no copo que o menino lhe trouxera). - Conta-me o que é o vinho.

- Na terra – respondeu o rapaz – há uma planta que se chama videira. No Inverno parece morta e seca. Mas na Primavera enche-se de folhas e no Verão enche-se de frutos que se chamam uvas e que crescem em cachos. E no Outono os homens colhem os cachos de uvas e põem-nos em grandes tanques de pedra onde os pisam até que o seu sumo escorra. E a esse sumo dos frutos da videira chamamos vinho. Esta é a história do vinho, mas o seu sabor não o sei contar. Bebe se queres saber como é.


E a Menina bebeu o vinho, riu-se e disse:

- É bom e é alegre. Agora já sei o que é a terra. Agora já sei o que é o sabor da Primavera, do Verão e do Outono. Já sei o que é o sabor dos frutos. Já sei o que é a frescura das árvores. Já sei como é o calor duma montanha ao sol. Leva-me a ver a terra. Eu quero ir ver a terra. Há tantas coisas que eu não sei. O mar é uma prisão transparente e gelada. No mar não há Primavera nem Outono. No mar o tempo não morre. As anémonas estão sempre em flor e a espuma é sempre branca. Leva-me a ver a terra

Sophia de Mello Breyner Andresen

Desejo a todos umas férias cheias de descobertas fantásticas, à semelhança da Menina do Mar, que percebeu os segredos da terra através de uma história que atravessa vários tempos, como a do vinho. No fundo, descobriu o sabor único de cada minuto. E, no final (do conto), experimentou o mistério da saudade – a flor invisível que nasce e cresce com a amizade.

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

3 comentários:

Anónimo disse...

Vinho, saudade, amizade, poesia, mar, férias e a pureza das palavras de Sophia ... que combinação maravilhosa, Emi. Comoveste-me. Obrigada. pcp

marialemos disse...

Gostei muito Maria Zarco.
Lembro-me bem porque li esta história às minhas filhas várias vezes ao deitar. Verdade.
Também li sobre a mitologia grega. O 1º de mitologia que li, sem ver primeiro, tive que inventar mais de metade porque era ... isso, com padrões diferentes, como é que hei-de dizer? Agora dá-me vontade de rir mas lembro-me do esforço para que a história fizesse sentido.
Lembro-me que passei 'O Primo Basílio' - do nosso querido Eça - a uma delas quando tinha 18 anos e leu o livro de fio a pavio. Depois disse-me: - O homenzinho percebia as coisas. :)
Acho que elas gostam de ler, agora já adultas.
Bem feita. Passei-lhes o vício!

Anónimo disse...

De facto, um bom livro é uma excelente companhia. Penso que todos nós, que conhecemos a língua portuguesa, temos o privilégio de poder saborear a escrita puríssima da Sophia, marcada pela luminosidade muito azul e límpida de Lisboa e das cidades banhadas pelo sol e pelo mar (Istambul tb dava, não achas pcp?). Muito obrigada pelos vossos comentários, MZ

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