17 agosto 2010

Nos 110 anos (ontem) da morte de Eça de Queirós

Porque, enfim, para quê o viajar? Todos os filósofos e todos os donos de hotéis são unânimes em dizer que se viaja para ver o que há de interessante no mundo. Ora, no mundo, só há de interessante, verdadeiramente, o Homem e a Vida. Mas para gozar a vida duma sociedade, é necessário fazer parte dela e ser um actor no seu drama: de outro modo, uma sociedade não é mais do que uma sucessão de figuras sem significação que nos passa diante dos olhos: Quando falo de sociedade não me refiro àquela que vem no High Life do Ilustrado: refiro-me às Sociedades, no plural e com S grande. Já o bom Flaubert falava da «melancolia das multidões estranhas». Essa melancolia é a mesma que se sente em vir de longe, para olhar para uma porta fechada. Quem for de Marco de Canavezes e queira gozar a vida, que fique em Marco de Canavezes, na Assembleia, na botica, e nos chás das Macedos! Se vier a Hyde Park ou aos Champs Elysées, vê só a Vida por fora, nos seus contornos exteriores.
É como estar a mirar as paredes escuras de um teatro, onde se está a passar, por dentro e em grande luz, uma interessante comédia. Por isso, nós, os Portugueses, pessoas infinitamente filosóficas, chamamos ao viajar: andar por fora. Expressão perfeita e profunda. Andar por fora, que melancolia, que desconsolação, quando estar por dentro é que é o interessante! Dir-me-ão os donos dos hotéis e as companhias de caminhos de ferro que é necessário ir ver a Civilização. De acordo. Mas o que é a civilização de Paris? É o romance de Zola, e a descoberta de Pasteur, e o bom dito de Rochefort: e isso tudo vai ter connosco, onde quer que estejamos, pelo paquete. A melhor maneira de gozar a civilização, é ao canto do lume, de chinelas. Dir-me-ão ainda os donos dos hotéis que se devem admirar os monumentos e que Notre-Dame eWestminster são um elemento de educação. De acordo, estalajadeiros, de acordo! Para isso se inventou a fotografia. E, em resumo, meu querido Bernardo, grande foi a tua sabedoria em não querer andar por fora.

Eça de Queirós, in 'Correspondência'

6 comentários:

Anónimo disse...

Quem gosta de viajar não pode estar de acôrdo com êste escrito.
Nunca pensei estar em desacôrdo com o Eça.
SdB(I)

Anónimo disse...

Fascinante este texto. Por um lado, concordo completamente. Por outro, discordo completamente. Sinto-me numa encruzilhada. Magnífica escolha de texto. Obrigada. pcp

Luísa A. disse...

Concordo com o Eça, João, no que respeita aos que viajam para conhecer as realidades sociais locais. Para isso, melhor será que não viagem, mas que se mudem, temporariamente que seja. Já conhecer as realidades artísticas locais, discordo nalguma medida. Os postais ilustrados e até os programas televisivos raramente dão a noção perfeita de factores decisivos, como, por exemplo, a dimensão. E nesta reside uma boa parte das emoções que sentimos com a observação «in loco». O tamanho, a imponência, a grandiosidade da obra humana são para mim, quase invariavelmente, a razão por que gosto ou por que volto decepcionada. :-)

arit netoj disse...

Texto fantástico que nos questiona e ajuda a saber viajar. Não é por acaso que damos outro valor às nossas raízes, à nossa casa, quando andamos por fora. É tão bom ir para fora para gozarmos essa ida bem cá dentro...
Beijinhos e obrigada pelo desafio.

marialemos disse...

Muito bem Eça. Quando Eça diz: ‘Ora, no mundo, só há de interessante, verdadeiramente, o Homem e a Vida. Mas para gozar a vida duma sociedade, é necessário fazer parte dela e ser um actor no seu drama: de outro modo, uma sociedade não é mais do que uma sucessão de figuras sem significação que nos passa diante dos olhos’.
O que vem à ideia é que mesmo ‘ ao canto do lume, de chinelas’ poderá acontecer que o Homem não faça parte da sociedade não sendo portanto um actor do seu drama. Será que é por causa disso que viaja, para aí ser obrigatoriamente um actor no pequeno episódio da viagem que fez? Tal como num jantar, com a oportunidade de conversar, expor ideias e encontrar sintonia? Será que ao cabo e ao resto faz tudo parte do processo de comunicação? Para depois, mais tarde ou mais cedo, mandar as chinelas dar uma curva e entrar definitivamente no dito teatro onde se passa ‘por dentro e em grande luz, uma interessante comédia.’ Most probably .

Quanto à questão de viajar, e tal como já foi dito, não há nada que possa substituir o contacto directo com os outros.

marialemos disse...

Ah, é verdade, só quero dizer que nunca usei chinelas nem faço tenção. Mas percebo o que quer dizer.
É que estava aqui a reler comentários e vi esta história de chinelas.

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