31 janeiro 2012

Duas últimas


Das memórias que guardo da infância e da adolescência (tempos já algo longínquos!), uma das mais vivas e marcantes tem a ver com as estadias no Douro, numa quinta dos meus avós maternos situada perto de uma povoação chamada Gouvinhas, na margem direita do rio, onde em regra passávamos anualmente a Páscoa e boa parte do mês de Setembro.

Eram tempos em que para ir de Lisboa até lá se demorava um dia inteiro, isto se o carro ou as estradas não pregassem uma partida, o que era frequente, ou em que à noite se utilizavam candeeiros de petróleo, porque não havia luz eléctrica. Sendo uma quinta situada num vale, entre montes elevados, lembro-me especialmente da violência das trovoadas, que punham a minha avó a rezar a Sta. Bárbara horas a fio, das trindades anunciadas pelo sino da Igreja todos os dias ao final da tarde, que ecoavam lentamente pelo vale e das sessões de leitura com o meu avô, assanhado queirosiano, que me deram a conhecer o grande escritor.

A quinta acabou infelizmente por ser vendida, ou talvez vendada, numa daquelas precipitações de que nos acabamos por arrepender e que depois nos atormentam pela vida fora, porque o mal já foi feito e dificilmente se pode reparar, mas as lembranças permaneceram.

Acompanhávamos as vindimas, quando eram em Setembro, porque às vezes entravam pelo Outubro dentro, com grande excitação. Sobretudo nas velozes caminhadas que os homens das rogas faziam pelas íngremes vinhas abaixo até aos lagares, em fila indiana, com os cestos de 50 kg de uvas às costas, sempre ao som da gaita de beiços tocada pelo que vinha à frente, que marcava o ritmo. Nós vínhamos atrás, sem nada a pesar nos costados, e mesmo assim muito dificilmente os acompanhávamos, em terrenos com inclinações brutais propensos a vertigens a sério. As noites em que se pisavam as uvas nos lagares, ao som da concertina, também eram um acontecimento.

Em homenagem a esses tocadores e a esses tempos, escolhi três músicas, de um britânico, um norte-americano e um canadiano, em que a harmónica/gaita de beiços desempenha um papel central. Os dois primeiros em gravações já com largos anitos, o último num vídeo bastante mais recente.

Não termino sem um parêntesis: para uma aproximação ao Douro, Miguel Torga, porque ninguém como ele, homem dali, descreveu melhor aquelas terras, paisagens, gentes e costumes.

Espero que gostem das músicas e que leiam Torga!
  
fq



5 comentários:

JdC disse...

Grandes gaitas! Efectivamente!

Luiza A disse...

Boa maneira de comecar o dia. Sempre gostei de gaitas de beicos e das musicas do meu tempo.. e do Douro. Obg.

JdB disse...

Belíssimo texto de uma nostalgia pastoral, diria eu. Com esta minha tendência para olhar para o lado, oiço as músicas com um interesse solidário de editor consciente. Diverte-me mais (e desculpar-me-ás a atenção desviada) lembrar-me do teu avô, queirosiano como referiste, que teve a amabilidade de me levar ao Clube do Porto num dia memorável de eventos automobilísticos e que, numa ingénua premonição errada, me mostrou uma estátua onde um leão se monta numa águia. Mal sabia ele...

Anónimo disse...

A título de curiosidade, direi que a gaita e beiços (nome científico harmónica) no Alentejo é conhecida por flaita ou gaita de vozes.
SdB(I)

Anónimo disse...

Gostei muito do texto que me lembra também as minhas memórias de infância passadas no campo, nas vindimas, a pisar uvas, em tardes maravilhosas de Setembros dourados... é uma época do ano que adoro. O Douro, claro está, é uma referência. E você "pinta-o" muito bem, é um retrato muito vivo, quase visual. Gostei imenso. pcp

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