Paredão. Sempre que possível, por volta das sete da manhã (07.10h, para os mais puristas), atiro-me a uma caminhada de mais de uma hora junto ao mar. Não levo música para não me distrair do ritmo e aproveito o tempo para redigir mentalmente cartas que vou escrever, para pensar na minha vida, para imaginar um texto para um post, ou para esvaziar a cabeça de toxinas. Cruzo-me sempre com as mesmas pessoas: a senhora francesa, sobre a qual escrevi um texto, que reza fervorosamente o terço; gente mais velha do que eu, que corre com uma energia incomodativa revelando T-shirts de várias mini-maratonas; a mulher de um amigo que caminha decidida para o seu local de trabalho, não imaginando eu se já lá chega suada; o senhor gordo, de chapéu de palha e de jornal na mão, que se senta revelando umas costas prolongadas para além da estética e do pudor; duas amigas sexagenárias que caminham lampeiras para um banho matinal; gente com personal trainers a apurar a forma física, desconhecendo que um homem desta idade sem um pouco de barriga é um possidónio. Se for uma hora mais tarde encontrarei outras pessoas, que serão quase sempre as mesmas dia após dia. Em comum têm o facto de sobre elas se poderem inventar histórias: sexo tórrido ao som de Quim Barreiros, cozinhados sensuais numa nudez tapada por um avental, uma masculinidade evidente denunciada por brincadeiras no chão com um casal de caniches, uma fé fervorosa que é temperada pela leitura compulsiva de livros sobre ritos satânicos. E tantas outras ao dispor de imaginações férteis... .
Paredão do Estoril, 28 de Agosto, por volta das 07.15h da manhã (tirada com um iphone)
Universidade. Em boa hora desafiado por uma amiga, decidi inscrever-me numa pós-graduação (Artes da Escrita, Universidade Nova). Os motivos eram vários: aprender, aprender, aprender; recuperar hábitos de estudo, aceder a mais mundo, ganhar agilidade intelectual, desenvolver a minha forma de escrever ou mudar radicalmente, explorar novas portas. Alguns dos professores ofereciam poucas dúvidas: Gonçalo M. Tavares, Luísa Costa Gomes, Mário de Carvalho, Ricardo Araújo Pereira, para citar apenas os que eu conhecia. 2ª feira fui tratar da burocracia, eu que saíra da faculdade em 1984.
A diferença entre uma secretaria nessa altura e agora? A existência da internet. O resto pareceu-me pouco diferente: notícias desconexas, falta de informação básica, desconhecimento por parte do pessoal, etc. Alguns exemplos: no site diz que é preciso uma fotografia, não especificando que tem de ser obrigatoriamente digital. Mandam-nos responder a um inquérito com preenchimento do nome da mãe e do pai. Será relevante? As empregadas da secretaria falaram comigo - que tenho 54 anos e aparento 54 anos - como se falassem com um aluno de 18. Exigia tratamento diferente? Exigir não exigia, mas achava adequado. O jovem do inqueritozinho (expressão dele) correu com duas jovens que navegavam num computador e, perante a minha preocupação sobre a extensão das perguntas, sussurrou-me para não responder a algumas. A minha orientação sexual, indaguei eu? Sorriu, como se não quisesse revelar a sua.
Enfim... Voltarei à escola 31 anos depois de ter posto os pés numa faculdade, e de ter visto um professor a dar uma matéria que me pareceu ser de outro curso, tal o espanto. Será que agora conseguirei aprender tudo sobre tudo? Chumbarei? Serei castigado? O Ricardo Araújo Pereira fará um sketch sobre mim do tipo idoso obeso com bom nome chumba na cadeira de escrita para comédia...?
Livro. Leio Pepetela pela primeira vez (A Sul. O sombreiro) oferta do meu amigo JdC. O começo não pode ser mais auspicioso. 1ª linha do 1º capítulo: Manuel Cerveira Pereira, o conquistador de Benguela, é um filho da puta. Estes são os inícios certos para um livro, porque nos agarram logo pelas ventas num qualquer escaparate da FNAC.
JdB
6 comentários:
Que bom ler as suas crónicas e que ilustração maravilhosa. Aquela luz não existe! Acho que é a sua imaginação.
Bom dia JdB
Pois é... estude e prepare-se bem... porque corre o risco do Ricardo Araújo Pereira escrever exactamente uma crónica sobre si num qualquer jornal diário... (tiraria o obeso, evidentemente:). Bjs, colega. pcp
Esperando daqui a 2 anos encontrar-te no paredao logo de manha dou-te os parabens pela decisao. Aos 36 voltei para a Universidade nos USA e tive as mesmas duvidas. Fiquei agradavelmente supreendida com o valor da experiencia de vida nos trabalhos de casa. Quanto as em empregadas de secretaria, percebo-as porque ja' tendo ensinado adultos devo dizer que quando em conjunto numa sala de aulas se portam como criancas!
Muito saudavel essa sua decisão de voltar à faculdade - a educação é ao longo da vida! Parabéns por se desinstalar.
Você vai-lhes dar trabalho, vai ser um desafio para a Nova.
Fico aqui à espera de 'novas' sobre este seu renovado estatuto.
Beijinhos
Olá JdB,
Peço desculpa pelo incómodo e a pergunta aqui à descarada, mas estou a pensar inscrever-me nesta pós-graduação e, nas minhas pesquisas acerca de feedback sobre a dita, deparei com o seu blog. Pelo que lhe pergunto: e que tal foi? Vale a pena?
Obrigada,
Rita
Rita da Nova,
Não incomoda nada.
Só posso falar da pós-graduação que eu frequentei. Neste momento não sei quem são os professores que lá dão aulas, e isso é relevante. Gostei muito das aulas dos Prof. Cabral Martins e Gustavo Rubim. Por esses dois, caso continuem, vale a pena. Voltar à faculdade 30 anos depois foi uma experiência. Também é relevante dizer que me formei em engenharia e trabalhei durante 20 anos numa fábrica, pelo que as minhas expectativas serão diferentes das de alguém que saiu na véspera de um mestrado e Teoria da Literatura na Fac. de Letras...
Caso esteja interessada em mais pormenores pode escrever-me directamente para o meu mail:
jmlb1958arrobagmailpontocom.
JdB
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