«Então João Gouveia
abandonou o recosto do banco de pedra, e teso na estrada, com o coco à banda,
reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:
- Pois eu tenho estudado
muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o senhor padre Soeiro,
quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez se riam. Mas eu
sustento a semelhança. Aquele todo do Gonçalo, a franqueza, a doçura, a
bondade, a imensa bondade, que notou o senhor padre Soeiro... Os fogachos e
entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito
aferro quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante
trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase
pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à
mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil.
A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante
nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as
dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma
simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de
melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível em si
mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói,
que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha
Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo
completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
— Quem?...
— Portugal.»
Eça de Queiroz,
"A Ilustre Casa de Ramires" (final)
***
O melhor que temos
para o futuro é tanta humanidade acumulada
Transcrevi acima o final
d’A Ilustre Casa de Ramires, onde Eça nos resume como só ele o soube
fazer. E ali está de tudo um pouco, desde a «constante trapalhada nos negócios»
sinal frequente de lhes ligarmos pouco, ao novo «arranque para a África», ou
para outros lugares que sejam, mesmo aqui. E o «herói» a aparecer seremos
todos.
Nós somos realmente
muito antigos e nada nos predestinava a ser fosse o que fosse. Nem terra, nem
gente, nem língua, nem coisa alguma que nos recortasse de outros. Por isso, o
que temos de original é sermos realmente muito antigos, sem razões de origem
para o sermos. Dito doutro modo, é perdurarmos. Quase contra tudo, quase contra
todos e quase contra nós, por vezes.
Se há «enigma
português», é este mesmo. Basta e sobra, por ser quase inédito. Também para nos
alimentar a esperança, que é o que sobeja dos impossíveis passados, para os
impossíveis futuros.
Nunca é demais exercitar
a memória coletiva, que vai na mesma onda. Esta ponta da Península, este
extremo ocidente, recolheu junto ao mar migrações sucessivas que aqui tiveram
de se deter, da pré-história ao século XV. Camadas meramente sobrepostas, ou
misturadas no melhor dos casos.
Por isso já houve quem
nos identificasse como norte-africanos aquém do estreito, ou semitas, ou gregos
no litoral, ou celtas depois, ou arabizados ainda, ou o que mais viesse à
memória e, sobretudo, à imaginação. Com um pouco de boa vontade, a toponímia,
algum monumento, até as feições e a cor do cabelo deste ou daquele têm dado
para tudo. As modernas pesquisas genéticas irão mais seguras. Mas não é difícil
concluir que alhures na Península e na Europa se podem fazer idênticas
conjeturas, sem chegar a conclusões «portuguesas».
Mais nossa será, creio
bem, a insistência em nos descobrirmos diferentes, a catadupa de razões
aduzidas, a incorporação – mais do que a originalidade propriamente dita – de
mitos fundacionais e profecias de futuros garantidos. Visto por outro lado, tal
elenco de explicações culturais esconde a inconsistência de outro tipo de
fundamentos.
Porque isso somos, uma
interessante realidade cultural, dando à cultura o sentido pleno de
autointerpretação coletiva, interligando e projetando no presente e no futuro
uma série de acontecimentos que fomos selecionando e transmitindo como
«nossos».
(...)
O melhor que temos para
o futuro é tanta humanidade acumulada. E este é um futuro onde os outros também
cabem, como nós caberemos com os outros, com aquela lucidez que só o tempo
apura. Também para a Europa fitar o mundo com olhos portugueses, de mar a mar.
(...)
D. Manuel Clemente
In
O tempo pede uma
Nova Evangelização, ed. Paulinas
(retirado daqui)
Sem comentários:
Enviar um comentário