«Se
a felicidade não existe, então o que é a vida?» tornou-se no lema do
encontro organizado pelo grupo universitário do Movimento Comunhão e
Libertação, que decorreu no fim de Março, no CCB. A pergunta foi escrita pelo poeta italiano
Giacomo Leopardi(1) (1798–1837) e
enviada, por carta, ao seu amigo Jacopensen, sendo uma expressão viva e
concreta de Esperança, que nos dá a capacidade de sermos maiores do que nós
próprios, como cantava o príncipe da «Cinderela», na ópera de Rossini, que tem
estado no S.Carlos.
Como é de Esperança que nos fala a
passagem da Quaresma para a Páscoa, a tirada do poeta oferece uma pista
especialmente adequada a esta época, até mesmo por ser Primavera e o ciclo da
natureza recomeçar. Aliás, é o mesmo motivo por que a festa cristã da morte e
ressurreição de Jesus foi fixada na estação onde a vida volta a despontar, festejando-se
o primeiro Domingo primaveril de lua cheia.
Na apresentação do evento cultural do
CL lia-se: «Só pode viver a experiência
da felicidade o homem que reconhece a necessidade de que é feito o seu coração,
cheio de desejo de infinito e plenitude. Isto é, o homem que age para viver
para sempre. Aquele homem que, desde o instante em que toca o despertador e
decide ir trabalhar, ou fica em casa a cuidar dos filhos, ou prossegue no seu
projecto de investigação sem desistir, em todo o seu agir, em cada circunstância,
rasga o horizonte e vê mais além e diz “é possível ser feliz”. São histórias de
homens e mulheres que vivem na certeza da felicidade que queremos propor no
Meeting Lisboa (…)».
Guiados pela poesia, poderá
percorrer-se com mais rapidez e profundidade a transição da Quaresma para a
Páscoa, i.e., a renovação por dentro de um tempo gasto e já sem vigor, para
podermos recuperar o fôlego e investir melhor no presente. Sobre o que urge mudar em nós Sophia faz um diagnóstico lapidar,
que seria redutor restringir à esfera política. Porque é no coração do homem
que o bem e o mal se decidem:
ESTE É O TEMPO
Este é o tempo
Da selva mais obscura
Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta é a noite
Deusa de chacais
Pesada de amargura
Este é o tempo em que os homens renunciam.
Sophia de Mello Breyner Andresen in Mar Novo (1958)
AS PESSOAS SENSÍVEIS
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra (…)
"Ganharás o pão com o suor do teu
rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o
pão"
Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem
In «Livro
Sexto» (1962)
A
denúncia, em poema, que a poeta (recusava-se
ser poetisa) intitulou «PORQUE» exalta uma
atitude de vida íntegra e corajosa, que se aplica a pouquíssimas pessoas, embora
numa tenha pleno sentido e total ressonância. A mesma a quem Rembrandt quis dar
o maior destaque, através da pintura, mostrando-a num ambiente íntimo que, gradualmente,
percebemos ser sagrado e estar envolto em ternura, apesar da dor explícita. Não
havia melhor forma de colocar o foco sobre um poder tão humilde, suave e
indecifrável para os padrões pragmáticos do mundo, com dificuldade em
vislumbrar para além de um corpo temporariamente entregue à morte:
PORQUE
Porque os outros se mascaram mas tu
não (…)
Porque os outros têm medo mas tu
não.
Porque os outros são os túmulos
caiados (…)
Porque os outros se calam mas tu
não. (…)
Porque os outros são hábeis mas tu
não.
Porque os outros vão à sombra dos
abrigos
E tu vais de mãos dadas com os
perigos.
Porque os outros calculam mas tu
não.
Sophia de Mello Breyner Andresen in «Mar Novo» (1958)
É muito sério o desafio que Sophia entendia estar no âmago da missão dos
poetas, ao serviço da comunidade dos homens: «A poesia (…) pede-me que viva atenta
como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. (…) A obra de
arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida. (…) Aquele que
vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso
sofrimento do mundo. (…) E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso
que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E
a busca da justiça é desde sempre uma
coordenada fundamental de toda a obra poética.»
Mas o que buscamos
afinal, dispondo-nos a melhorar? O que nos move? Até onde estamos disponíveis
para crescer e abarcar todos?... Com
ecos das orações de S.Francisco de Assis, Sophia tornou muito concreto o Pai-Nosso, q.b. quaresmal:
A paz sem vencedor e sem vencidos
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Neste tempo pascal, em que acabámos de lembrar a morte
como uma Partida de quem vai antes de nós, e nem tanto de quem é levado definitivamente
para longe de nós(2), volto a citar Sophia, por rasgar um horizonte
fecundo e luminoso sobre a ausência mais misteriosa que a humanidade conhece: «quero, ao terminar (uma locução pública(3)), saudar os meus amigos ausentes (também em sentido pleno,
post-mortem): porque não há nada que possa separar aqueles que estão reunidos por uma fé e
por uma esperança.»
Creio ser das melhores formas de desejar a cada um Boas
Festas Pascais.
Maria
Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2
semanas)
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(1) Giacomo Taldegardo Francesco di Sales
Saverio Pietro Leopardi (29.Jun.1798–14.Jun.1837)
distinguiu-se como poeta, filósofo, ensaísta e filologista, em apenas 38 anos
de vida. Foi no ambiente mais conservador dos Estados Papais, onde nasceu e
viveu, que entrou em contacto com as ideias vanguardistas do Iluminismo. A
qualidade da sua produção lírica converteram-no em figura cimeira do panorama
literário e cultural da Europa, evidenciando uma criatividade literária repleta
de reminiscências românticas. Também a profundidade da sua reflexão sobre a
existência e a condição humanas foram marcantes para o pensamento filosófico
ocidental.
(2)
Reparafraseando S.Ambrósio, o santo de Milão que teve o
mérito de converter Sto.Agostinho, impressionado pela sua interpretação
acutilante do Evangelho, com uma novidade que nunca ouvira, até então, ele que
ensinava numa das melhores universidade do Norte de África, zona muito
desenvolvida, à época.
(3) Conclusão do texto que leu a
11 de Julho de 1964, no almoço organizado pela Sociedade Portuguesa de Editores
para a entrega do Grande Prémio de Poesia, pelo seu «Livro Sexto».
1 comentário:
Agradeço, este post, pela msg, pela estética, por me ter capturado.
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