Olá F,
Está boa? Eu estou óptimo e tenho-me divertido
imenso.
Olá F,
Espero que esta te encontre de saúde, que nós
por cá todos bem.
Olá F,
Junto com esta carta vai uma saudade.
Olá F,
Gostava que me mandasses uma fotografia tua
para poder ver-te, mais do que imaginar-te.
Olá F,
Choro o dia todo.
Olá F,
O mundo não é igual desde o dia em que
nos vimos pela última vez.
Olá F,
Nunca mais vi ninguém do grupo do Algarve, mas
escreveu-me a Carmo, muito triste, a dizer que a Maria e o Manel começaram namoro às escondidas.
Olá F,
Tal como me pediste, ontem fui àquela casa onde viveste, e que agora é um infantário para crianças órfãs.
Olá F,
Quer ir comer um gelado na 6ªf a seguir à
aulas?
(...)
Escrever uma carta é inaugurar um mundo.
Escrever uma carta a uma namorada é povoar esse universo com
sensações, personagens vivas, uma espécie de criação do mundo em versão
juvenil, adulta, actual. Faz-se o cheiro do algarve ou de paragens mais
distantes; faz-se a imagem, o som, as pessoas. Faz-se a emoção do primeiro
beijo, n-ésimo beijo como se fosse o primeiro. Faz-se a música que se cola aos
odores da água de colónia, do caju, da savana, dos jacarandás, das praias e das
ondas, das noites quentes feitas do dia-a-dia. Faz-se a pessoa a quem se liga
tudo o que foi dito antes, mais tudo o que foi acrescentado que não existia e
tudo o que existia que fica no escondido de um cofre, de uma carta por mandar,
de um envelope onde se põe um nome, todo ele inflamado de emoção com
destinatário e remetente. E faz-se outra pessoa, e outra namorada que se quis
que existisse mas foi antes de tempo, das outras que existiram e que definiram
o tempo. E é a música, e a quietude, e a completude de um momento feito de tudo
o que enche e do nada que é a mais. E é o descompasso das horas, dos terraços
com multidões que espiam, contam, cochicham, riem, imaginam sem saber, porque
só ele e ela sabem, ou desconfiam, ou choram ou riem, porque as mãos são
pertença só dos dois, o beijo desejado e não dado é pertença só dos dois, a música é
pertença só dos dois. Só dos dois que dançam como se nada mais existisse ou, a
existir, nada mais interessasse. Só no fim, quando nada mais há a sentir, quando se disse o óbvio e o indizível, se soluçou de dor ou se olhou vagarosamente a lua, crescente sempre, se fez a luz. Só então se fez a luz.
***
Deixo-vos com Percy Sledge, recentemente
desaparecido, e que nunca visitou este estabelecimento.
JdB
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