Fotografia de Alfredo Cunha (tirada da net) |
Conto uma história já contada, provavelmente; conto outra por contar.
Há três ou quatro anos, talvez, fui a um jantar desafiado por amigos recentes. Ao fim de dez minutos quis ir-me embora. Apesar da simpatia das pessoas e da qualidade do repasto, nada me prendia ali. As idades não eram as minhas, as conversas não eram as minhas, não conhecia ninguém e era-me impossível estabelecer pontos comuns - geográficos, sociais, geracionais, culturais - a não ser o facto da nossa nacionalidade, portugueses todos. Fui ficando, em nome da educação e da amabilidade. Já à porta, naqueles dois ou três minutos de despedidas cordiais, percebi que o dono da casa (que não me conhecia, nem nada sabia de mim) vivia o drama de um filho pequeno a lutar contra um cancro. Realizei então, naqueles instantes, que o objectivo do jantar era aquele. O alinhamento cósmico, Deus, o cálculo de probabilidades, as coincidências, haviam juntado duas pessoas que nunca se tinham visto, que se viram mais uma vez, talvez, quando o miúdo perdeu a guerra, para aquele momento de similitude de destinos. O jantar não serviu para mais nada, a não ser para dois minutos em que toda uma noite se cumpriu.
Como a população em geral, presumo, nem sempre estou bem disposto; nem sempre sou simpático; nem sempre vou à feira de Tires (em bom rigor nunca tinha ido...) e nem sempre converso com feirantes, a não ser para realizar a transacção. Sábado passado desafiaram-me para ir à dita feira de Tires; eu estava bem disposto e simpático e, por isso, travei conversa com duas feirantes: uma, a quem comprámos um artigo de cozinha, outra, com quem conversámos sobre galinhas poedeiras. E é esta última feirante que interessa. Falei-lhe das galinhas pretas, das pintadas, das vermelhas. Indaguei da vida destas aves, dos espaços, dos ovos, do mercado, do amarelo das gemas, da produtividade e das delícias da vida no campo, da superstição associada à de cor preta. Perguntei-lhe, em tom de graça educada, se se importava que registássemos o telemóvel dela como senhora galinhas. Ela riu-se, brincou comigo, foi simpática e contou-me da sua vida. Que lhe tinha morrido uma filha há 21 anos, vítima de leucemia; que faria sete anos nesse mesmo ano; e que tinha morrido a 28 de Janeiro. Tinha tudo a ver comigo: há 21 anos era 1994, ano em que Deus nos deu o que a vida veio a tirar; leucemia é um cancro; criança, morte e 7 anos dizem-me tudo; 28 de Janeiro é uma data muito próxima há quase quarenta anos. Não arrisquei a perguntar o nome da criança, não fosse o espanto ser maior.
Os mais cépticos falarão em coincidências; os mais matemáticos - arrojadamente matemáticos, talvez - falarão em probabilidades. Os mais crentes encontrarão Deus nesta equação. Será que a feirante conta a história da vida dela a qualquer cliente? Se sim, o mistério está resolvido. Se não, porquê a mim, um cavalheiro vagamente obeso, de barba por fazer, que se entreteve a questionar a produtividade do gallus gallus domesticus e a ocupar o tempo da vendedora?
Há um jantar e uma ida à feira de Tires. O que é comum a ambos os eventos? A improbabilidade tornada realidade. A evidência de que por trás de vidas temporariamente tristes e sofridas há um flash de beleza e de encanto, proporcionado por um encontro de gente que só por isso, pela tristeza e pela luta comuns, se cruzam. Tivesse o anfitrião um cavalo coxo e eu não teria ido ao jantar; tivesse a feirante uma dívida ao fisco e eu não teria conversado com ela. A conversa só existiu porque ambos os interlocutores, em ambos os eventos, foram beneficiários de algo, muito além da pequeníssima compreensão das coisas do mundo, que os impeliu ao contacto.
O que faço com isto? Não sei. Para já conto quase obcecadamente a quem ainda revela paciência cristã por me ouvir. Depois? Depois é acreditar que há uma razão por trás disto, que a seu tempo descortinarei. Não comprarei aves poedeiras a outra pessoa que não à senhora galinhas, Inês de seu nome. Não me parece justo (uma justiça que independe totalmente do valor de negócio) e talvez seja perigoso, que a beleza do destino não se questiona nem se combate.
JdB
4 comentários:
Em duas palavras: é isso. Em mais duas: é isto.
Muito bom, caro escriba-mor.
gi.
O que fará cada um deles com isso, também cabe perguntar.
Seguramente que o que vos irmana é cada um ter uma Estrela lá no Céu que vos brilha, e que os outros conseguem ver porque os três são peregrinos dessa mesma e misteriosa galáctica.
Ele há Príncipes de Serendip...
Beijinhos e saudades
«a beleza do destino não se questiona nem se combate.»
A vida é como as ondas do Guincho: se lhes fizermos frente de peito aberto, é um desastre; se tentarmos fugir à frente delas, uma catástrofe. A única solução é mergular nelas por completo.
De resto, a vida sabe sempre o que fazer connosco; nós é que às vezes não sabemos o que fazer com ela.
V
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