20 abril 2015

Vai um gin do Peter’s?

Até fim de Abril, decorre no cinema Nimas um ciclo de 10 filmes do realizador italiano Roberto Rossellini (1906-1977)(1) , que fez carreira a partir do início da década de 40, nem sempre com êxito mas quase sempre com imenso talento. Pertenceu a uma geração de grandes realizadores italianos, como Vittorio De Sica, Visconti, Pasolini, mais tarde Federico Fellini, Antonioni, etc.

Com uma estética muito italiana, a sua obra está marcada pelos traumas da II Guerra e da ditadura do Duce. Combina a educação cristã com as ideias de intervenção de cariz mais socialista. É ainda considerado o precursor do modernismo e inspirador da Nouvelle Vague, em concreto pelo filme que corresponde ao início do Neo-Realismo no cinema italiano: «ROMA, CIDADE ABERTA» (1945).


Juntamente com «Paisà –Libertação» (1946) e «Alemanha, Ano Zero»  (1948), «ROMA…» integra a trilogia de filmes dedicados à guerra.  Sendo uma das obras-primas da Sétima Arte, teve de ser filmado na clandestinidade (a rodagem começou em Janeiro de 1944), assumindo um formato ficcional próximo da realidade, i.e., do documentário. Foi esse filme e «PAISÀ», que Ingrid Bergman viu nos EUA, pelo ano de 1947. Ficou a tal ponto fascinada, que escreveu ao realizador a oferecer-se para filmar com ele. Ela que era a diva mais bem paga de Hollywood. Coincidentemente, a carta foi entregue ao destinatário no seu dia de anos, a 8 de Maio de 1948, pela Minerva Film Corporation, que acabou por intermediar este contacto na qualidade de distribuidora dos filmes do italiano, nos EUA. Claro que a resposta foi rápida e entusiasmada(2), merecendo óptimo acolhimento por parte da actriz, que cumpriu o prometido e bastante mais. Além de ter sido a protagonista de vários filmes, casaram logo em 1950 e tiveram 3 filhos. Mas 7 anos depois divorciavam-se e Ingrid regressava a Hollywood.

O magnífico «ROMA, CIDADE ABERTA» adopta para título a expressão consagrada em palco de guerra para oficializar uma rendição. De facto, a 8 de Setembro de 1943, a capital italiana rende-se à Alemanha nazi, até à libertação pelos Aliados, em Junho de 1944. As conhecidas aselhices das tropas italianas, a somar ao sentimento generalizado de superioridade dos oficiais do Reich, resultava em total desconsideração do ocupante pelo cidadão comum italiano. Dos exemplos mais conhecidos e anedóticos dos desastres militares das tropas de Mussolini ocorreram na invasão da Grécia e na campanha de África, onde só atrapalhavam Rommel. No filme esse é o tema da animada discussão entre as altas patentes da Gestapo, desdenhando os 2 prisioneiros da Resistência, que tinham acabado de apanhar: um militante comunista, nado e criado numa Itália católica, e o pároco que se atreva a dar-lhe guarida, na tentativa de fuga aos nazis.   

Qual jogo cruel, para um dos SS era óbvio que iria ser facílimo obterem tudo o que quisessem daqueles seres inferiores. Para outro, desconfortável naquela situação onde se adivinhava noitada de tortura encarniçada, não se atrevia a fazer prognósticos, até porque não partilhava a premissa sobre a inferioridade do povo italiano. A trama concentra-se naquela noite de agonia, no quartel da Gestapo, dispostos a tudo para fazer o militante comunista denunciar os nomes dos seus companheiros. A presença do padre no quartel completa a outra faceta da insubordinação popular contra os alemães, todos (quase) corajosamente unidos contra o inimigo comum. Temendo isso, os oficiais tinham-no sentado bem à vista da sala onde actuavam os torcionários, para tentar que a sua aflição fizesse o seu compatriota claudicar. Por azar dos Távoras: o da Resistência não parecia minimamente intimidado nem disposto a ceder, e o padre era feito da mesma massa indomável. Aliás, percebia-se que estava a velar para que o bravo militante resistisse, sustentando-o com a oração – a sua arma mais poderosa. O facto é que redundou num serão perdido para os nazis, furibundos com o silêncio sepulcral do militante e a velada atenta e irritantemente fiel do sacerdote. Por isso, compreende-se a decisão das SS em fuzilar o padre, depois de a vítima das suas sevícias desfalecer, a meio da noite. O próprio não estranhou o desfecho, acompanhando com galhardia a pequena brigada de fuzileiros, até um campo remoto, onde apenas um par de miúdos da rua puderam testemunhar mais um homicídio, homenageando, depois, o pároco herói. Afinal, a Roma ocupada não cedia nada, uma vez que o povo italiano continuava livre, ainda que ao preço da vida.

Uma parceria de resistência ganhadora, mas intolerável para as SS    

Breves anotações sobre alguns dos filmes em cartaz, no ciclo do Nimas:

PAISÀ – LIBERTAÇÃO (1946):  faz um retrato muito realista do mundo subversivo da guerra, que perturba os comportamentos, tendendo a isolar o indivíduo, fechando-o numa atitude perigosamente defensiva, redutora. Como comentava o realizador alemão Rudolph Thome acerca desta película:  «essa coragem de mostrar as fraquezas humanas e das as confessar é algo que incentiva o renascer da esperança.»
  
ALEMANHA, ANO ZERO (1948): foca o desespero dos alemães, desorientados depois da guerra, numa sociedade devastada por dentro, através da figura de uma criança genuína. É comum considerar-se um marco do realismo no cinema, pela capacidade de apresentar um miúdo a funcionar como criança, sem cair no cliché do adulto miniatura.

O AMOR (1948): considerado o mais biográfico de Rossellini, dir-se-ia antecipar a sua separação da grande actriz Anna Magnani. Aproveitando a incursão por Nápoles e pela Sicília, quando rodara «PAISÀ», volta a explorar a paisagem agreste e ancestral do Sul. Assim, cria o enquadramento ideal para captar na tela o invisível, i.e., a interioridade das personagens. Centrado em torno de uma mulher que se aproxima da alucinação, revela a autenticidade dos pobres de espírito, na melhor acepção, à semelhança da ousada, mas muito respeitosa, transposição para o cinema do dogma da Imaculada Conceição por Manoel de Oliveira, em «Benilde ou a Virgem Mãe» (1974-1975), que se inspira numa peça de José Régio.

Anna Magnani num desempenho magistral

STROMBOLI (1950): o primeiro filme com Ingrid Bergman, confrontando os choques de culturas e valores entre uma eslava e um italiano da ilha vulcânica de Stromboli, um enclave minúsculo e claustrofóbico, praticamente inaguentável para a jovem emigrante de paragens longínquas, que se dispusera a casar com o pobre pescador para sair do campo de refugiados e rumar à Argentina. Irónico ir antes parar a outra clausura, numa aldeola piscatória, situada nos contrafortes de um vulcão com actividade incerta. O final é brilhante e dá a chave de leitura ao cerco sociológico que se vai estreitando em volta da personagem Karin, de certo modo, devolvendo-lhe a liberdade interior.



EUROPA 51 (1952): novamente com a actriz sueca, parte de uma situação de desespero para uma mãe, que se lança, em seguida, numa redescoberta da sua missão no mundo, depois de o chão lhe ter fugido debaixo dos pés. Em plenos anos 50, a incursão da senhora rica ao universo do operariado pobre segue a senda do máximo despojamento, a ponto de se tornar indecifrável para todos, pobres incluídos. Irene, a protagonista interpretada por I.Bergman, acaba por se oferecer a si própria, numa alusão simbólica ao desígnio evangélico de que ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Ainda por cima, sob o olhar de incompreensão e distanciamento de todos, sem excepção, garantindo que a direita nunca soube o que fez a mão esquerda, com a mesma conotação evangélica da pobreza espiritual mais radical.  


VIAGEM EM ITÁLIA (1954): acolhida friamente pelo público italiano, que desapreciava q.b. Rossellini, o volte-face final foi considerado estapafúrdio e inverosímil. Mas é exactamente o oposto como perceberam, de imediato, os grandes críticos (e depois realizadores) franceses, que deram prestígio aos míticos Cahiers du Cinéma: Rivette, Romer, Godard, Truffaut. Evadindo-se da narrativa clássica, trata-se de um drama psicológico, que se centra no estado de alma das personagens: um casal inglês para quem os mal-entendidos e as picardias mútuas tomam conta do frágil espaço de comunicação. Desafiados pela história humana de vários milénios, tão visível no Sul do país, o casal revê todo o seu percurso de vida naquela viagem física e psicológica. Serão capazes de se reavaliar e crescer? O final é muito sugestivo, mas não seria justo quebrar o suspense…   


Uma última achega sobre Rossellini, que costumava dividir os seres humanos em dois grupos: os que têm Esperança, e os que desistiram dessa virtude maior, normalmente por cedência gradual: primeiro desgostando-se, depois desanimando e terceiro entregando-se ao desespero. Muito mais perigoso do que Roma ter de se declarar cidade aberta…   

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1)    Cartaz: http://medeiafilmes.com/eventos/ver/evento/dez-filmes-de-roberto-rossellini-em-exclusivo-no-espaco-nimas-a-partir-de-marco/

 (2)   Excertos da carta: «Viria para a Europa? Posso convidá-la para uma viagem a Itália (…)? Gostaria que eu avançasse com este filme (Stromboli)? Quando? O que acha da ideia? Desculpe-me todas estas questões mas poderia continuar eternamente a perguntar-lhe coisas. Rezo para que acredite no meu entusiasmo. O seu, Roberto Rossellini»

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