Até fim de Abril, decorre no cinema Nimas um ciclo de 10 filmes do realizador
italiano Roberto Rossellini (1906-1977)(1) , que fez
carreira a partir do início da década de 40, nem sempre com êxito mas quase
sempre com imenso talento. Pertenceu a uma geração de grandes realizadores
italianos, como Vittorio De Sica, Visconti, Pasolini, mais tarde Federico
Fellini, Antonioni, etc.
Com uma estética muito italiana, a sua obra está
marcada pelos traumas da II Guerra e da ditadura do Duce. Combina a educação
cristã com as ideias de intervenção
de cariz mais socialista. É ainda considerado o precursor do modernismo e inspirador
da Nouvelle Vague, em concreto pelo filme que corresponde ao início do Neo-Realismo
no cinema italiano: «ROMA, CIDADE ABERTA»
(1945).
Juntamente com «Paisà –Libertação» (1946) e
«Alemanha, Ano Zero» (1948), «ROMA…» integra
a trilogia de filmes dedicados à guerra. Sendo uma das obras-primas da Sétima Arte, teve
de ser filmado na clandestinidade (a rodagem começou em Janeiro de 1944),
assumindo um formato ficcional próximo da realidade, i.e., do documentário. Foi
esse filme e «PAISÀ», que Ingrid Bergman viu nos EUA, pelo ano de 1947. Ficou a
tal ponto fascinada, que escreveu ao realizador a oferecer-se para filmar com
ele. Ela que era a diva mais bem paga de Hollywood. Coincidentemente, a carta
foi entregue ao destinatário no seu dia de anos, a 8 de Maio de 1948, pela
Minerva Film Corporation, que acabou por intermediar este contacto na qualidade
de distribuidora dos filmes do italiano, nos EUA. Claro que a resposta foi rápida
e entusiasmada(2), merecendo
óptimo acolhimento por parte da actriz, que cumpriu o prometido e bastante
mais. Além de ter sido a protagonista de vários filmes, casaram logo em 1950 e tiveram 3 filhos. Mas 7
anos depois divorciavam-se e Ingrid regressava a Hollywood.
O magnífico «ROMA, CIDADE ABERTA» adopta para
título a expressão consagrada em palco de guerra para oficializar uma rendição.
De facto, a 8 de Setembro de 1943, a capital italiana rende-se à Alemanha nazi,
até à libertação pelos Aliados, em Junho de 1944. As conhecidas aselhices das
tropas italianas, a somar ao sentimento generalizado de superioridade dos
oficiais do Reich, resultava em total desconsideração do ocupante pelo cidadão
comum italiano. Dos exemplos mais conhecidos e anedóticos dos desastres
militares das tropas de Mussolini ocorreram na invasão da Grécia e na campanha
de África, onde só atrapalhavam Rommel. No filme esse é o tema da animada
discussão entre as altas patentes da Gestapo, desdenhando os 2 prisioneiros da
Resistência, que tinham acabado de apanhar: um militante comunista, nado e
criado numa Itália católica, e o pároco que se atreva a dar-lhe guarida, na
tentativa de fuga aos nazis.
Qual jogo cruel, para um dos SS era óbvio que
iria ser facílimo obterem tudo o que quisessem daqueles seres inferiores. Para
outro, desconfortável naquela situação onde se adivinhava noitada de tortura
encarniçada, não se atrevia a fazer prognósticos, até porque não partilhava a
premissa sobre a inferioridade do povo italiano. A trama concentra-se naquela
noite de agonia, no quartel da Gestapo, dispostos a tudo para fazer o militante
comunista denunciar os nomes dos seus companheiros. A presença do padre no
quartel completa a outra faceta da insubordinação popular contra os alemães,
todos (quase) corajosamente unidos contra o inimigo comum. Temendo isso, os
oficiais tinham-no sentado bem à vista da sala onde actuavam os torcionários,
para tentar que a sua aflição fizesse o seu compatriota claudicar. Por azar dos
Távoras: o da Resistência não parecia minimamente intimidado nem disposto a ceder,
e o padre era feito da mesma massa indomável. Aliás, percebia-se que estava a
velar para que o bravo militante resistisse, sustentando-o com a oração – a sua
arma mais poderosa. O facto é que redundou num serão perdido para os nazis, furibundos
com o silêncio sepulcral do militante e a velada atenta e irritantemente fiel do
sacerdote. Por isso, compreende-se a decisão das SS em fuzilar o padre, depois
de a vítima das suas sevícias desfalecer, a meio da noite. O próprio não
estranhou o desfecho, acompanhando com galhardia a pequena brigada de
fuzileiros, até um campo remoto, onde apenas um par de miúdos da rua puderam
testemunhar mais um homicídio, homenageando, depois, o pároco herói. Afinal, a
Roma ocupada não cedia nada, uma vez que o povo italiano continuava livre, ainda
que ao preço da vida.
Uma parceria de resistência ganhadora, mas intolerável para as SS |
Breves anotações sobre alguns dos filmes em
cartaz, no ciclo do Nimas:
PAISÀ – LIBERTAÇÃO (1946): faz um retrato muito realista do mundo
subversivo da guerra, que perturba os comportamentos, tendendo a isolar o
indivíduo, fechando-o numa atitude perigosamente defensiva, redutora. Como comentava
o realizador alemão Rudolph Thome acerca desta película: «essa coragem de mostrar as fraquezas humanas
e das as confessar é algo que incentiva o renascer da esperança.»
ALEMANHA, ANO ZERO (1948): foca o desespero
dos alemães, desorientados depois da guerra, numa sociedade devastada por
dentro, através da figura de uma criança genuína. É comum considerar-se um
marco do realismo no cinema, pela capacidade de apresentar um miúdo a funcionar
como criança, sem cair no cliché do adulto miniatura.
O AMOR (1948): considerado o mais biográfico de
Rossellini, dir-se-ia antecipar a sua separação da grande actriz Anna Magnani. Aproveitando
a incursão por Nápoles e pela Sicília, quando rodara «PAISÀ», volta a explorar
a paisagem agreste e ancestral do Sul. Assim, cria o enquadramento ideal para captar
na tela o invisível, i.e., a interioridade das personagens. Centrado em torno
de uma mulher que se aproxima da alucinação, revela a autenticidade dos pobres
de espírito, na melhor acepção, à semelhança da ousada, mas muito respeitosa,
transposição para o cinema do dogma da Imaculada Conceição por Manoel de
Oliveira, em «Benilde ou a Virgem Mãe» (1974-1975), que se inspira numa peça de José Régio.
Anna Magnani num desempenho magistral |
STROMBOLI (1950): o primeiro filme com Ingrid
Bergman, confrontando os choques de culturas e valores entre uma eslava e um
italiano da ilha vulcânica de Stromboli, um enclave minúsculo e claustrofóbico,
praticamente inaguentável para a jovem emigrante de paragens longínquas, que se
dispusera a casar com o pobre pescador para sair do campo de refugiados e rumar
à Argentina. Irónico ir antes parar a outra clausura, numa aldeola piscatória,
situada nos contrafortes de um vulcão com actividade incerta. O final é
brilhante e dá a chave de leitura ao cerco sociológico que se vai estreitando
em volta da personagem Karin, de certo modo, devolvendo-lhe a liberdade
interior.
EUROPA 51 (1952): novamente com a actriz
sueca, parte de uma situação de desespero para uma mãe, que se lança, em
seguida, numa redescoberta da sua missão no mundo, depois de o chão lhe ter fugido debaixo dos pés. Em plenos anos 50, a incursão da senhora rica ao
universo do operariado pobre segue a senda do máximo despojamento, a ponto de
se tornar indecifrável para todos, pobres incluídos. Irene, a protagonista
interpretada por I.Bergman, acaba por se oferecer a si própria, numa alusão
simbólica ao desígnio evangélico de que ninguém tem maior amor do que aquele
que dá a vida pelos seus amigos. Ainda por cima, sob o olhar de incompreensão e
distanciamento de todos, sem excepção, garantindo que a direita nunca soube o que fez a mão esquerda, com a mesma
conotação evangélica da pobreza espiritual mais radical.
VIAGEM EM ITÁLIA (1954): acolhida friamente
pelo público italiano, que desapreciava q.b. Rossellini, o volte-face final foi
considerado estapafúrdio e inverosímil. Mas é exactamente o oposto como
perceberam, de imediato, os grandes críticos (e depois realizadores) franceses,
que deram prestígio aos míticos Cahiers du Cinéma: Rivette, Romer, Godard, Truffaut.
Evadindo-se da narrativa clássica, trata-se de um drama psicológico, que se
centra no estado de alma das personagens: um casal inglês para quem os mal-entendidos
e as picardias mútuas tomam conta do frágil espaço de comunicação. Desafiados
pela história humana de vários milénios, tão visível no Sul do país, o casal
revê todo o seu percurso de vida naquela viagem física e psicológica. Serão
capazes de se reavaliar e crescer? O final é muito sugestivo, mas não seria
justo quebrar o suspense…
Uma última achega
sobre Rossellini, que costumava dividir os seres humanos em dois grupos: os que
têm Esperança, e os que desistiram dessa virtude maior, normalmente por
cedência gradual: primeiro desgostando-se, depois desanimando e terceiro entregando-se
ao desespero. Muito mais perigoso do que Roma ter de se declarar cidade aberta…
Maria
Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2
semanas)
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(1) Cartaz: http://medeiafilmes.com/eventos/ver/evento/dez-filmes-de-roberto-rossellini-em-exclusivo-no-espaco-nimas-a-partir-de-marco/
(2) Excertos da carta: «Viria para a Europa? Posso
convidá-la para uma viagem a Itália (…)? Gostaria que eu avançasse com este
filme (Stromboli)? Quando? O que acha da ideia? Desculpe-me todas estas
questões mas poderia continuar eternamente a perguntar-lhe coisas. Rezo para
que acredite no meu entusiasmo. O seu, Roberto Rossellini»
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