Há momentos na vida dos povos que são pontos de viragem radical, em que
nada fica como dantes. Compreensivelmente, as catástrofes costumam produzir esses
sobressaltos no regular curso dos
acontecimentos, como estamos a assistir com o tremor de terra no Nepal.
Assim aconteceu também em Lisboa, onde até a hora de começo de uma calamidade
natural entrou para a História: às 9h30
da manhã de 1 de Novembro de 1755, a capital do Império – conhecida na
Europa como a cidade do ouro, tal a
sua magnificência – estremecia com a violência de um terramoto com uma magnitude
próxima dos máximos – 8,50 na escala de Richter. Era, depois, submergida por um
tsunami e ainda devorada por um incêndio que a consumiu durante dias. Uma
sequência de desastres sem precedentes, que um canal norte-americano simulou
numa curta-metragem com link postado adiante.
Toda a Europa bem pensante ficou chocada com o desmoronamento quase
instantâneo de uma construção humana magnífica, como era Lisboa, no more a city of gold. A impotência
humana ficou a nu, ensombrando o optimismo do Século das Luzes. Os principais
filósofos iluministas reconhecer limites que até ali tinham desvalorizado,
confortavelmente. Kant dedica páginas a este fenómeno perturbador desenvolvendo,
a partir da hecatombe, o conceito de sublime,
além de várias teorizações geográficas. Para Voltaire este foi um momento de
verdade. Em Dezembro de 1755 discorre sobre o tema, refutando as certezas de
Leibniz e de Alexander Pope, e colocando a personagem Candice a passear nos
escombros de Lisboa e a rever a sua premissa de vida sobre o melhor dos mundos. Num dos versos do seu «Poème sur le desastre
de Lisbonne», declara: «Je suis comme un docteur ; hélas ! je ne sais rien.». Filósofos
contemporâneos consideram, inclusive, que a certeza fundadora do ideário de
Descartes conheceu, aqui, as primeiras brechas.
O Núncio acreditado em Lisboa – D. Filippo Acciaiuoli – verbaliza
de forma muito expressiva o alcance da tragédia, nas cartas semanais que dirige
ao Papa, a partir de 4 de Novembro: «o
terrível terramoto da cidade que foi Lisboa» (1).
Por calhar num feriado, a família real teve a sorte de ser poupada,
encontrando-se fora da cidade, nos seus domínios de Belém, enquanto a sua luxuosa
residência no Palácio da Ribeira, situada no Terreiro do Paço e decorada com
telas de Rubens, Ticiano e Correggio, era desfeita pelas vagas gigantescas e,
mais tarde, pelo fogo. Só a biblioteca real contava 70 mil volumes, o que era
um assinalável para a época, possuindo incunábulos inéditos. As lareiras nas
casas e a imensidão de velas que resplandeciam nas Igrejas, para festejar o Dia
de Todos-os-Santos, propagaram acidentalmente as chamas. O grande hospital de
Lisboa, chamado de Todos-Os-Santos, como o próprio dia, ardeu como uma tocha.
Curiosamente, logo a 2 de Novembro, no dia de Fiéis Defuntos, nascia no
próspero palácio imperial de Viena, a filha mais nova da poderosa Imperatriz
Maria Teresa de Áustria – Maria Antonieta, futura rainha de França, marcada por
inúmeras adversidades ao longo da vida, até acabar na guilhotina, no auge da
Revolução Francesa. Segunda curiosidade, que associa de modo directo Maria
Antonieta à Casa Real portuguesa: os seus padrinhos de baptismo eram os tios D.José
I (Habsburgo pelo lado materno) e D.Mariana Vitória, que tiveram de se fazer
representar na cerimónia.
As perdas foram imensas: em vidas contabilizam-se cerca de 90.000, só em
Lisboa; a nível material, cerca de 85% da construção lisboeta ruiu, entre
estabelecimentos, quartéis, hospitais, monumentos, património artístico riquíssimo,
a recém inaugurada Casa da Ópera, o valioso Arquivo Real que guardava documentos
náuticos únicos e outras preciosidades. Até o túmulo de uma das figuras maiores
da portugalidade desapareceu: o Santo Condestável, depositado no Carmo. Apenas subsistiram
o pórtico manuelino e o travejamento das naves do Convento, conferindo-lhe um
aspecto misterioso e romântico, que fascina os turistas. À imagem do Carmo,
Lisboa ficou reduzida à expressão mais simples, o que significou uma dor
indizível, na altura.
O ciclo de provação e luto, iniciado naquela manhã fatídica, não se ficou
pela devastação de 1 de Novembro. Somaram-se, depois, as réplicas nos meses
seguintes, as doenças, as pilhagens e uma política especialmente autoritária e persecutória
com julgamentos sumários cheios de irregularidades, a culminar em pena capital.
Os casos mais emblemáticos foram o Processo dos Távoras (após um nebuloso
atentado contra o rei pelo Duque de Aveiro em que tudo indica pretender
atingir-se o Marquês, e não o monarca, forçando-se depois o envolvimento do
poderoso clã Távora, que se opunha ao primeiro-ministro), a 13 de Janeiro de
1759, e o enforcamento do padre jesuíta italiano Malagrida, a 21 de Setembro de
1761. Isto já para não nos determos nas consequências da nova estratégia educativa
de cariz elitista, introduzida pelo Marquês, aplicando as teorias pedagógicas
do médico e cientista Ribeiro Sanches (1699-1783), que recomendava que a educação
fosse um privilégio exclusivo de uma minoria aristocrata, para garantir a
centralidade do poder. Por azar, os estudantes do recém-criado Colégio dos
Nobres não estavam dispostos a estudar, manietando os professores e
entretendo-se em batalhas campais nas salas de aula que, não poucas vezes,
tiveram de ser encerradas. Os inúmeros instrumentos científicos que o marquês
encomendou para o colégio, só 200 anos depois saíram das embalagens! Assim, a
nova política restritiva redundou num fracasso completo, que o
primeiro-ministro não pudera prever. Com esta política, Portugal tomava um rumo
em contra-corrente com o resto da Europa, que se empenhava na ampla
alfabetização das populações, exceptuando a Rússia de Catarina II, de quem
Ribeiro Sanches fora Conselheiro de Estado. É da Czarina a expressão: a Rússia é demasiado grande para ser
governada por mais de uma pessoa.
É na prossecução da estratégia elitista e de concentração máxima do poder
régio que vem a expulsão dos jesuítas, pondo-se cobro a 170 anos de um ensino que
fora ampliado à classe média, no Colégio de Santo Antão. Mas o principal ainda
era afastar a Companhia de Jesus do império ultramarino, onde tinham uma
influência proeminente e uma presença capilar por todo o território da coroa
portuguesa. Na sua cruzada anti-jesuítica, o marquês conseguiu internacionalizá-la
e pressionar o Papa a extinguir a Companhia, em 1773. Novamente, a pragmática
Czarina foi excepção, pelo que na Rússia ortodoxa os padres da Companhia
continuaram a ser protegidos e acarinhados, mantendo o seu contributo
prestimoso na área do ensino.
Voltando a 1755: das ruínas do terramoto-maremoto, Lisboa renasceu das
cinzas por mérito do plano de reedificação levado a cabo sob a vontade férrea
de Sebastião de Carvalho e Melo. A Baixa sujeitava-se, assim, a um traçado
urbanístico harmonioso e simétrico, que nunca mais conheceu. Os novos edifícios
adoptaram uma estrutura anti-sísmica que se tem provado resistente, apesar de
ainda não ter havido novo sismo de magnitude semelhante. A reconstrução foi
também favorecida pela experiência adquirida durante o reinado anterior, de
D.João V, com Mafra e outros monumentos, que resultaram numa espantosa escola
de engenharia civil.
Cria-se a estrutura flexível alcunhada
de «gaiola pombalina»
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Ainda outro
mérito do marquês correspondeu ao levantamento de dados junto da população,
através de um inquérito encomendado às paróquias de todo o país, para se apurar
o sucedido e as consequências imediatas, num trabalho notável que é considerado
precursor da ciência sísmica. O questionário incluía 5 questões: Quanto tempo (considera que) durou o sismo? Quantas réplicas se
sentiram? Que tipo de danos causou o sismo? Os animais tiveram comportamento estranho? Que aconteceu nos poços? A partir das
respostas, religiosamente arquivadas na Torre do Tombo, os cientistas têm
podido reconstituir o fenómeno, sendo a primeira iniciativa de descrição
objectiva e em larga escala, que se conhece, no campo da sismologia.
Em Novembro, o Smithsoninan Channel postou na net uma curta-metragem com a
simulação computorizada do horror vivido naquela manhã de 1755, integrada numa
série de episódios a que designou por «Tempestade Perfeita: A Ira da Deus».
Começa pela razia produzida pelo sismo, seguindo-se o flagelo da onda colossal
e logo as chamas mortíferas. As ruas da capital convertem-se num cenário
apocalíptico, com o desabamento de muitos edifícios, nomeadamente igrejas, onde multidões
de fiéis participavam nas cerimónias litúrgicas do feriado:
(link alternativo: https://pt-pt.facebook.com/Lisbons.Heritage/videos/823264177760553/
)
E hoje: que impacto positivo poderá
vir da catástrofe no Nepal? Se a
resposta solidária internacional ajudar o país a renascer das cinzas, nem tudo
foi perdido.
Maria
Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2
semanas)
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(1) Expressão
adoptada também no título do livro editado pela Aletheia com a correspondência
guardada nos arquivos secretos do Vaticano.
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