Hélène Grimaud (HG) é uma bonita pianista francesa, nascida em 1969. Numa entrevista curta ao canal France 5 (dez minutos, mais ou menos) que mão amiga teve a amabilidade de me enviar, conta de si, de quando e como lhe nasceu a música clássica. Fala - e este será o tema mais surpreendente - do seu amor pelos lobos. Num filme de alguns segundos, apenas, vê-se HG fazendo festas e dando de comer a um imponente espécimen. É ela e o lobo, no mesmo espaço desprotegido. É ela com uma mão aberta de onde o lobo come, aparentemente manso, como se fosse eu e o cachorro que agora tenho em casa.
HG gosta de lobos. Poderiam ser orquídeas, gastronomia, coleccionismo, voluntariado com crianças ou idosos, cultura de cogumelos ou columbofilia. De entre a quantidade quase infinita de opções para ocupar o tempo e distrair a mente, HG escolheu os lobos. Estende-lhes as mãos com carne ou legumes ou ração, afaga-lhes a cabeça e o focinho, deixa-as ao alcance de uma língua húmida e grata. As mãos com que o faz são as mesmas com que nesse mesmo dia, na véspera ou no dia seguinte, correrá as teclas de um Steinway para tocar o concerto nº 23 para piano e orquestra de Mozart, ou a suíte Ibéria de Albeniz. De manhã a jaula dos lobos, de noite a sala de espectáculos. Ponto comum? Umas mãos estendidas - para prazer do canis lupus ou do homo sapiens.
Sem aquelas mãos prodigiosas, que são a extensão visível de uma mente também ela prodigiosa, HG não seria nada daquilo que é e quer ser. E mesmo assim põe-nas numa espécie de cepo, arriscando o machado. Ao contrário das pernas não sei de que actriz, da voz não sei de que cantor, ou dos seios não sei de que escultura, as mãos de HG não podem estar seguras - ou então os lobos são uma actividade subversiva, ao arrepio de quaisquer condições contratuais. Uma dentada imprevista que decorre de um sobressalto, de um ruído estranho, de uma pata pisada, atira para o corredor da morte a pianista Hélène Grimaud, não a pessoa Hélène Grimaud.
Que lição, que ideia, que paralelismo poderemos tirar deste episódio da vida de uma francesa bonita nascida em 1969? Não sei. Talvez o risco, é o que me ocorre. O que é o risco na nossa existência? Deixamos de fumar, de beber em excesso, de jogar em excesso, de ter peso em excesso, de ter sedentarismo em excesso, sendo que o excesso é, por vezes, uma definição ténue, subjectiva, sujeita a estéticas da mundanidade e obsessões de equilíbrio. Largamos vícios e desregramentos em nome da vida, do prolongamento da vida, do amor que é um deve e haver em proporções nem sempre justas. Não queremos morrer, ou queremos fazê-lo o mais tarde possível, seja por egoísmo, seja por altruísmo. Não arriscamos em nome da segurança, da integridade de um corpo que se pretende esbelto e saudável, de um sentido de dever que nos aferrolha, ou de uma mente a quem proíbem loucuras.
Há duas hélènes grimauds - a mulher e a pianista. A primeira pode viver sem dois dedos, a segunda inexiste com essa limitação. E no entanto, apesar dessa dualidade, talvez haja uma única HG que vive do bafo dos lobos para interpretar uma sonata, para quem a aventura de uma mão sobre um animal é condição necessária para a apoteose. Talvez ela diga ao manager que lhe cuida dos contratos e lhe recomenda creme gordo ou harpejos: deixa-me os lobos, que a morte deles é a minha; deixa-me o risco, que sem ele sou uma gota de nada. Que hélène grimaud existe dentro de cada um de nós? Quem são os lobos e o piano que afagamos com mãos ansiosas ou tranquilas?
Termino como terminei um livro, citando Sophia de Mello Breyner: (...) E por isso em cada gesto ponho / solenidade e risco.
Termino como terminei um livro, citando Sophia de Mello Breyner: (...) E por isso em cada gesto ponho / solenidade e risco.
JdB
1 comentário:
o que me espanta e encanta é a indiferença com que a HG arrisca a pianista para tratar dos seus lobos, o desprezo pelas hierarquias , a igualdade de oportunidades para os seus valores, em suma este viver realmente despreocupado, só atingível por esta atitude de aceitação da fatalidade.
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