Eva sentou-se num lugar discreto daquela mesa rectangular onde tudo se passaria. Do lado esquerdo dela, uma rapariga feia, vagamente gótica - ou apenas excêntrica - alheia a tudo, excepto a imagens da internet que lhe pareciam substancialmente sado-masoquistas. Rapariga que intervinha com frequência errática para dizer inutilidades rebeldes, como se o seu cérebro fosse uma dormência enfeitada de graffitis inestéticos. Do seu lado direito, uma senhora já idosa, a sorrir quando os outros sorriam, a concentrar-se quando os outros se concentravam, a rir muito quando os outros riam muito. Intuiu-lhe a surdez e a necessidade de parecer atenta, integrada, moderna, actualizada ao nível do momento imediato, porque o futuro é matéria incerta para todos.
Eva apanhou o cabelo frondoso no alto da cabeça com um lápis por afiar - uma pequena barra de grafite envolta em madeira gravada com um nome comercial. Abriu os olhos para ver, a boca para manifestar o espanto, as mãos para receber a energia que transitava naquela sala de aula. E preparou-se para ter duas horas de êxtase perante aquele professor que falava do filósofo - um substantivo que não carecia de nome, pois o filósofo era o filósofo, não um filósofo. E aquele professor sabia tudo - o enquadramento histórico, o pensamento pioneiro, a originalidade da construção frásica, a estrutura dual do raciocínio transformado em sistema vedado aos desatentos. À medida que o professor deambulava pelo tempo e pela circunstância, o fascínio de Eva crescia de forma abundante e enérgica. Na sua mente já se misturavam sentimentos - o filósofo e o professor, o pensamento de quem cria e a voz de quem comunica, como se fosse impossível discernir se o fascínio está em Mozart, se na orquestra que interpreta o seu Requiem inacabado. Quando deu por si, confundia a mensagem e o mensageiro, e não porque houvesse um nexo causal entre ambos, uma vez que entre carta e carteiro existe uma relação contratual apenas, e um professor poder ser apenas isso - o prestador de um serviço imaginado por outros. Talvez pelo tal filósofo.
Quando deu por si, supôs que o professor fixara o lápis, o nariz aquilino, as sobrancelhas talvez demasiado finas, a boca aberta de desejo e necessidade de oxigénio, as mãos que anseiam percorrer terrenos alheios, uma camisola decotada e umas pernas magras e pequenas que ele imaginava nervosas por baixo de uma mesa que já não tinha marca FOC. Quando deu por si, imaginou que o professor lhe tiraria o lápis para apreciar o cabelo a cair em cascata nuns ombros desnudos. E Eva, no seu máximo discernimento possível, sentiu-o a desejá-la, percebeu-lhe o fetiche pelo lápis que seria uma espécie de abre-te sésamo para tudo o que viria a seguir - uma estudante e um professor, a sensação excitante de perverter uma ordem institucional e saudavelmente pedagógica, o gozo antecipado de se imaginar alvo da inveja de colegas que a imaginariam a conviver, no mesmo instante, com uma barba eroticamente rala e uma inteligência fulgurante e criativa. Já passara da fase ingénua de achar que a noite prometia. A noite confirmava-se!
A faculdade estava quase abandonada quando Eva assomou ao gabinete do professor. Percorreu o corredor largo e minado de informações académicas - defesas de tese, mostras de teatro de vanguarda, lutas pelos direitos dos animais em locais onde as crianças crescem mal nutridas, disponibilidades de explicações sobre esperanto ou chinês da época azul. Tinha posto uma saia curta e tirara mentalmente as medidas da secretária de fórmica onde se sentaria para conversar sobre o filósofo, para, sabe-se lá, acabar por deitar-se não conversando sobre nada, porque há alturas em que um gemido é superior a uma frase eloquente. Toda ela tremeu ao ouvir o professor encetar um monólogo dentro do gabinete: este filósofo? Um pateta sobrevalorizado, sem uma pensamento alinhado com outro, um homem que só pertence aos cânones americanos porque quem faz as listas agora são os hispânicos e os negros. Na Europa não se falaria dele. Só faço seminários sobre ele porque faz parte do contrato. Uma bela estopada, digo-te...
Eva imaginou um equívoco qualquer, uma partida, uma ensaio de auto-contradição, um teste para aprender a contra-argumentar. Ninguém falaria assim do seu filósofo! Empurrou a porta de mansinho... Lá dentro, o seu professor, de costas para a entrada, revelava umas algemas que lhe apertavam os pulsos e quatro marcas de vergastadas numas nádegas pálidas raiadas de vermelho. As calças, enrodilhadas de volta dos tornozelos, tolhiam-lhe os movimentos, como se fossem umas grilhetas todas feitas de terylene. Ao lado, a rapariga gótica, de olhos maquilhados de muito negro a revelarem uma dormência mental toda feita de vácuo, dizia-lhe de forma agreste: se falas outra vez nele levas uma vergastada... É isso que queres? E o professor falava e musculava as nádegas, para receber mais outro castigo...
JdB
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