13 abril 2017

Desterro

(...)
Falhei em tudo. 
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. 
A aprendizagem que me deram, 
Desci dela pela janela das traseiras da casa, 
Fui até ao campo com grandes propósitos. 
Mas lá encontrei só ervas e árvores, 
E quando havia gente era igual à outra. 
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar? 


***


Florentino pousou o livro sobre as pernas e sorriu. Não o fez para ninguém em especial, porque estava sozinho no alpendre. Talvez tenha sorrido para si próprio, ou, quem sabe, tenha devolvido o sorriso com que o destino lhe pregara esta partida. De facto era uma partida: logo ele, um homem tão voltado para a cidade, para o espaço urbano, para as praças e para a circulação frenética das pessoas, para a vida de bairro e das lojas pequenas, herdar uma propriedade no meio do Alentejo. Mas que raio vou eu fazer aqui?, perguntou-se o engenheiro civil com um doutoramento em estruturas anti-sísmicas e coleccionador de boquilhas.

Florentino tinha passado o primeiro fim de semana na quinta. Passara a chamar-lhe desterro, não em homenagem ao bairro lisboeta, mas em sinal de pessimismo militante, como se fosse um político anti-regime condenado à extradição para ambientes inóspitos. Para ele havia o comércio local e as sedes do partido; para ele, também, havia o correio da manhã e os jornais chamados de referência. Tudo estava ligado - havia uma linha ténue, invisível, imperceptível para a maioria das pessoas, que unia a loja das revistas, a relojoaria de segunda mão e a padaria regional ao correio da manhã. Como? Como algo que veicula - talvez mesmo que é - o país real. Nas sedes dos partidos, no jornais de referência, nos restaurantes de autor e nos grandes hotéis a via era feita de artificialidade, de existências pintadas a blush e a botox, de cores que não são as existentes na natureza. Olhou em volta e não viu comércio local nem vida bairrista. Olhou em volta e não viu, simplesmente... Era um cego, de olhos lucidamente abertos, ou um esperto que olha para o vazio. 

Florentino olhava para o sobreiro, para a giesta, para a secura, para o pastor e para o eucalipto com o mesmo desespero com que se olha para a declaração do iva, para uma multa de trânsito ou para uma análise de sangue que revela excessos. E quedava-se mudo, imaginando uma venda ao desbarato, como quem despacha uma loja de gelados herdada de um tio louco e emigrante no Alasca. Decidiu-se pela venda, tendo partilhado a decisão com Veronika, uma namorada alemã muito recente, em Portugal a fazer um trabalho sobre a comida dos ganhões nos anos 60, e que cozinhava com primor e arrojo. Tomada a decisão, sentaram-se a jantar. Veronika apresentou-lhe um prato que cheirava divinamente. Perguntou-lhe o que era mas a rapariga, a dominar ainda mal o português, respondera-lhe apenas: roter gabeldorsh. E Florentino comeu e repetiu e sentiu-se bem. E só percebeu que comera um prato que toda a vida detestara quando Veronika lhe perguntou:

- O que quer dizer fui até ao campo com grandes propósitos?

Talvez não fosse tempo de vender.

JdB        


1 comentário:

Anónimo disse...

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

JdB, a beleza do jogo está precisamente em conseguir-se o nada .
O nada é a Páscoa do sonhador.
Não fora o constante nada no fim de cada caminho e só teria havido uma paisagem em toda uma vida. Aleluia pois para os eleitos; o Homem sonha, Deus quer e a Obra é nada. (pobres daqueles para quem a obra nasce)...

Que maravilhoso falhanço que é a busca da felciidade entre os chaparros, que destino glorioso ser vitima da «Cidade e as Serras». Ah, Jacinto esse fiel e eficiente carrasco . Até breve , que vou subindo para o patíbulo.

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