24 abril 2017

Textos dos dias que correm

"Agnus Dei" (det.) | Francisco de Zurbarán | 1635-1640 | Museu Nacional do Prado, Madrid, Espanha

Farei figura de ingénuo, mas da belíssima festa da Páscoa há uma coisa que sempre me perturbou: o massacre dos cordeiros e dos cabritos, em número de milhares, talvez até de milhões, que acompanha o almoço dominical, a festa da ressurreição.

O sacrifício de Jesus é claro para mim, e é-me suficientemente clara a simbologia que o acompanha nos ritos da tradição cristã, mas não consigo aceitar que ele tenha de ser seguido pelo sofrimento e morte dos animais que são, provavelmente, os mais inocentes entre as criaturas vivas.

Cordeiros e cabritos são os pequeninos de duas espécies vegetarianas (como vegetariano é o jumento que leva Jesus a Jerusalém), mas que, precisamente pela sua mansidão e escassa agressividade, de que provém a sua dificuldade em se defender, são desde sempre, na ordem imperfeita da natureza, as mais fáceis presas das espécies carnívoras, incluindo o homem.

Cordeiros e cabritos são também, sempre por causa da sua mansidão, objeto de singulares atenções humanas, dos pastores e não só, precisamente por serem emblemas da inocência. Mesmo os pastores bons e amantes do seu rebanho estão habituados a matá-los e a comê-los ou a vendê-los para que outros os matem e comam, como aconteceu massivamente na Páscoa.

É a sua inocência e a sua candura que levaram a se terem escolhido os cordeiros (e os cabritos) como símbolo da inocência de Jesus, porque o seu sacrifício recorda o deles e, de alguma forma, o reflete.

Uma das pinturas mais desconcertantes para mim, desde a primeira vez que vi uma reprodução, é o "Agnus Dei", de Zurbarán, quadro de pequenas dimensões que mostra um cordeiro cujas patas estão ligadas por uma corda e que espera sem reagir, cândido e puro, que chegue alguém para o matar.

O "Agnus Dei" é Jesus, o cordeiro sacrificial. Mas enquanto isto nos deveria afastar do massacre dos cordeiros, acontece desde há séculos que durante a Páscoa sejamos nós a sacrificar os cordeiros, para os comer (e isto sucede em muitas outras religiões).

Acreditava desde pequeno que matando o cordeiro se tornasse a matar Jesus, e continuo a não perceber porquê, para evocar o seu sacrifício, se tenham de realizar tantos outros, a cada ano, em prejuízo das mais inocentes entre todas as criaturas do reino animal, e acreditava que, em vez disso, fosse dever do cristão proteger, amar e salvar o inocente cordeiro como maneira de honrar Jesus.

Os antropólogos e teólogos têm certamente respostas, mas apesar disso continuo a sonhar que na Páscoa, e sempre, se matem menos inocentes, quer humanos quer animais, e que, na verdade, não se matasse nenhum. Entretanto o nosso tempo continua a conjugar, com nova extrema violência a barbárie tecnológica (a nuclear) sem renunciar, absolutamente, às barbáries primordiais.


Goffredo Fofi
In "Avvenire"
Trad.: SNPC
Publicado em 22.04.2017

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