31 outubro 2017

Das superstições



O filme acima, vencedor de um prémio de curtas metragens num festival finlandês, foi-me enviado por mão amiga: falamos de um filme que retrata uma noite na vida dos forcados de Montemor-o-Novo. 

O tema forcados e toiros daria pano para mangas e não estou certo de querer dar para esse peditório. Gosto de corridas de toiros e, nas portuguesas, gosto dos forcados, porque me fala de destemor, de ousadia, de gozo, de risco, de algo que é nosso. Falamos também de dor e sofrimento, para os próprios e para os mais próximos, como aconteceu há pouco tempo com um rapaz filho de gente minha amiga. Gosto de corridas de toiros em Espanha, onde não vou há anos, e pouco ou nada sigo pela televisão. Gosto da estética, também do risco, da tradição que se mantém, da beleza em desuso no capote, da técnica da muleta, em pormenores mínimos de arrojo ou fantasia. O resto - a morte mais ou menos bárbara do toiro, o desacerto sanguinário de uma estocada mal dada, o aço a bater no osso ou os picadores mais virulentos - tudo isso faz parte de uma barbárie que me habita, para a qual não tenho explicação, remorso ou defesa.

O filme acima, e que é o cerne deste post, tem uma curiosidade, uma minudência, um pormenor desinteressante para a comunalidade das pessoas. Não falo do destemor, do prémio, da prontidão da entreajuda. Falo da superstição. Talvez não haja actividade pública com uma superstição religiosa tão arreigada como a festa de toiros. O cantor de ópera tem superstições, o actor de teatro também, talvez mesmo o dançarino de salão. Mas o forcado, o toureiro, o cavaleiro tauromáquico, têm uma superstição religiosa fortíssima e, por isso, surpreendente. A superstição e a religião não casam bem. Ou não fazem um casamento elevado, talvez. Ter fé é diferente de ter uma fezada. Rezamos para pedir força e técnica, para estarmos à altura da situação, não sermos vencidos por nada que não seja elevado. Rezamos, seguramente, na esperança de que Deus nos ampare naquela noite, mesmo sabendo que Deus deixa que aconteça, não tem uma intervenção directa no sucesso ou no fracasso daquela pega. 

A superstição é diferente, é baixar os olhos para os santinhos e não elevar os olhos a Deus. A superstição é dar importância à duplicação ou triplicação do sinal da cruz, o beijo no polegar ou em qualquer outra parte da mão; é repetir rezinhas aos santos protectores da jaqueta de ramagens, é cantar em latim por via da fonética, não do entendimento da linguagem. O que me impressionou neste filme foi a superstição religiosa de gente que tem vinte anos, pouco mais. Alguns, seguramente, com frequências universitárias, filhos (alguns) de gente que viu mundo, que deu educações lúcidas, que levou os filhos à catequese, que frequenta igrejas aos domingos. Espantou-me, com todo o respeito e admiração que tenho por estes rapazes, que perpetuem uma tradição bizarra que é, de alguma modo, incompatível com um certo discernimento.   

Gosto dos forcados, das pegas, do destemor e da arte. Mas preferia não ver gente nova a beijar santinhos ou dedos. Tudo o resto é fantástico.

JdB

1 comentário:

Anónimo disse...


Olá, já não estamos no tempo da arena romana, para mim nada disto faz sentido nos dias de hoje, a não ser recordar o quanto de animal e barbárie existe no ser humano que se crê superiror a outras espécies e por isso não se inibe de as submeter...apenas para um prazer lúdico e gratuito...

Enfim ainda não chega aqui a msg de Jesus.

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