29 junho 2018

Da cidadania e da existência


Passava ontem pelos corredores de um hospital com valência de maternidade quando me defrontei com uma placa que indicava um serviço. O nome do serviço? Simples: nascer cidadão. Poucas coisas me fizeram lembrar tanto a revolução francesa como o singelo dístico com duas palavrinhas apenas. Nada de liberdade, igualdade, fraternidade; nada de guilhotinas ou cabeças decepadas, vestígios de brioches com que se devia alimentar a população se não houvesse pão para o efeito. Apenas, e tão somente, nascer cidadão.  Não se nasce bebé, não se nasce princesa ou filho querido. Nasce-se cidadão, apesar do cavalo de baloiço; nasce-se cidadão, apesar da cara de bebé anúncio de papas. 

Pedi para me tirarem uma fotografia ao dístico: fizeram melhor, tiraram a este poster onde ressaltam várias coisas: a indicação dos dois ministérios que tutelam estas actividades - justiça e trabalho e segurança social; a indicação do simplex, esse programa de eficiência fabril ao serviço do Estado e, claro está, dos cidadãos. Porém, uma frase chamou-me à atenção, e repito uma afirmação antiga, como se eu levasse com um tijolo pelas ventas. A frase é simples e gramaticalmente correcta: para existir é preciso ter nome. É o nome que nos dá existência, e o número de contribuinte, que é já já a seguir, é a impressão digital, não do amor, da ternura, da preocupação pelo presente e futuro daquele ser indefeso, mas da máquina fiscal. 

O problema do Estado - e problema seguramente irresolúvel - é o facto de ser uma engenharia processual expurgada de afecto, de calor humano, de relacionamento social. O Estado vive de normas de execução permanente, de procedimentos, de tentativas de eficácia e de controlo. Poucas frases são tão frias como nascer cidadão ou para existir é preciso ter nome. Agora, que dá jeito ter estes serviços nas maternidades, dá. O Estado não tem - nem saberia como - de regozijar-se porque nasce mais um ser humano; limita-se a acrescentar um input num programa de estatísticas, a atribuir um número que perseguirá o agora cidadão até ao fim da vida, a requerer um nome para dar existência a um bebé que, na quase totalidade dos casos, é fruto do amor de duas pessoas que vêm naquele ser a sua continuidade e o seu enlevo, não uma linha, um número, uma influência num gráfico.

Os nomes que se dão a quem nasce são a forma como nos referiremos àquele bebé, depois rapaz, depois adulto, ou como o chamaremos para nos abraçar, dar a mão e sentido a uma vida. Existe por si, como lugar geométrico do amor; tem nome, não para existir (porque existe desde o momento em que foi concebido, e desde o início dos tempos, como parte do plano de Deus) mas para se distinguir dos outros, mesmo daqueles que têm o mesmo nome dele. A cidadania, por mais importante que seja, é posterior ao amor. O Estado é que não sabe, nem pode, falar disso. Falo eu, para lembrar o dia 27 de Junho, dia em que o destino e a eternidade sorriram de novo para mim. E o outro sorriso, o humano, virá depois. Já não falta tudo.

JdB 


3 comentários:

Anónimo disse...

bom dia JdB

Parabéns e brinde a quem o destino e a eternidade mais uma vez sorriram. Venturas e farturas para o bem-vindo .

Se calhar não era descabido perguntar-se a razão e urgência da campanha de batismo civil que critica, talvez se espantasse com o abandono infantil que sucede no mundo real.

De facto a revolução francesa fez-se para que todos os que nascem tenham um nome e não apenas os "filhos-de-algo",mas também se fez para que hajam hospitais em que para se distrair a espera se desanque no estado que é sempre um bom passatempo.

Felicidades republicanas e nem por isso menos Amigas

ATM

JdB disse...

Bom dia ATM,

Agradeço evidência da sua visita, que transforma a interrogação inquieta numa certeza afortunada.
Confesso que não sou dado a essas lucubrações de natureza histórica. Os meus argumentos sustentam-se na ignorância, que é uma porta que se abre ao chicote de quem sabe mais do que eu. Se eu soubesse tudo, o que daria em troca a quem me dá o gosto de uma chicotada republicana?
Já não sou da época dos filhos de algo, felizmente. Mas também ainda não era (ao tempo em que registava descendência) do tempo dos cidadãos. Também felizmente.
A Revolução Francesa deu-me uma enorme alegria - não pelos motivos que possa pensar, mas pela sua existência, ATM. Se não tivesse havido 1789 talvez Vexa fosse anglófilo. Esse mundo em que me revejo ganharia um pensador de excelência, mas eu perderia um opositor leal, para além da auto-consciência do pouco que sei e sou comparativamente com outros.
Desancar no Estado é terapêutico, ser desancado por si é recompensador. Espero não ter de escolher entre uma e outra, porque quero ambas.
Seja feliz, apesar (malgré...) da existência de palavras ominosas no seu vocabulário, como sejam cidadão e republicano.

Um seu criado,

JdB

Anónimo disse...

Caro JdB,

Que Deus ampare sempre o novo rebento da Família!

Caro ATM,

Não subscrevo, nem um pouco, o que refere a respeito da Revolução Francesa. Não se cumpriu de todo, antes foi terreno fértil para o crime e a barbárie,percursora da decadência francesa que arrastou a da Europa, ambas bem à vista de todos.

Abrs
fq

Acerca de mim

Arquivo do blogue