A feliz comparação com as admiráveis esculturas de terracota da China antiga (séc.III a.C.), em tamanho natural, veio de um bloguista de referência(1) para assinalar a monumentalidade das 1587 figuras de barro, que recriam a versão mais faustosa da procissão lisboeta do Corpo de Deus, recuando ao reinado de D.João V (1689-1750). Por comparação com os congéneres do Império do Meio, aplicam-se aos nossos “guerreiros” os lemas dos anos 60: «road to peace», «power-flower», «love, not war».
«Em 1944, alimentando um sonho vindo de 1939, Diamantino Tojal reconstituiu a versão joanina da Procissão do Corpus Christi feliz» (http://malomil.blogspot.com/2017/09/corpus-christi-procissao-do-corpo-de.html) |
O conjunto está em exposição, até 1 de Julho, no antigo Convento da Graça, em Lisboa: «Corpus Christi: A procissão do Corpo de Deus, por Diamantino Tojal». |
As miniaturas moldadas em barro não-cozido, pelo empresário Diamantino Tojal (1901-1980), em 1944, traduzem a mansidão dos portugueses, que preferem um cortejo de paz e gáudio a paradas militares intimidatórias. Mesmo no decurso da Segunda Guerra Mundial. O cortejo escolhido soma oito séculos de existência, atravessando a história de vários povos e de toda a Cristandade, ano após ano. Na origem da Festa, conhecida por Corpus Christi, estiveram fenómenos sobrenaturais ocorridos no século XIII, entre visões místicas e um milagre portentoso confirmado pelo teólogo e artista que reabilitou o lugar de Aristóteles na Filosofia ocidental – S.Tomás d’Aquino.
Na cidade italiana onde se deu o milagre – Orvieto – a magnífica catedral continua a celebrar, inclusive pela sua beleza, o fenómeno testemunhado pelo padre Pedro de Praga, no segundo quartel do século XIII, ao ver a hóstia ganhar corporalidade com sangue vivo, para lhe provar que Cristo se tornará (e torna) presente na hóstia consagrada. Daí, o termo técnico para referir a mudança de substância que se opera durante a Consagração, quando um pedaço de pão se «transubstancia» no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo.
Logo na altura, o dito milagre deu pretexto a uma encomenda do Papa Urbano IV ao Santo-filósofo e poeta d’Aquino para compor os hinos da nova festa. Assim surgiram «Tantum Ergo Sacramentum»(2) (Tão Sublime Sacramento), «Lauda Sion Salvatorem» (Louva, ó Sião, o Salvador) ou «Adoro Te Devote», que continuam a ser entoados em qualquer procissão do Corpo de Cristo.
Em Portugal, esta solenidade tem sido festejada por pintores, escritores, artesãos, reis e o grande povo anónimo, desde que D.Dinis a oficializou, em 1282.
A primeira alusão vinha da época do seu pai – D.Afonso III – depois de as visões (1243) de Santa Juliana de Cornillon serem validadas. Além de as reconhecer, o Papa Urbano IV quis oferecer aos fiéis uma festa comemorativa da misteriosa presença de Cristo na hóstia consagrada. Em 1264, o dia foi fixado na Quinta-feira a seguir ao Pentecostes, em alusão ao dia da Ceia Pascal. O rito processional foi instituído mais tarde (1317).
Amadeo de Souza Cardoso ficou de tal modo impressionado com a procissão a que assistiu em Braga, que lhe dedicou uma tela:
«Procissão Corpus Christi», Amadeo de Souza-Cardoso, 1913. Colecção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. |
Em 1955, Martins Barata também trabalhou o tema em dois painéis, situando-os no tempo do Mestre de Avis:
Alexandre Herculano descreveu-a ao detalhe, qual cronista, no seu romance «O monge de Cister», inspirando-se nos arquivos do séc.XV. À época, a dimensão religiosa coabitava com a profana:
«(…) Danças d’espadas, danças mouriscas, danças de péllas (…) tudo, emfim, quanto se possa imaginar de caricatura, de burlesco, de doudejante servia de moldura a este quadro singular, em cujo topo figuravam alguns magistrados municipaes, e sobre o qual flutuavam dezenas de pendões, bandeiras e guiões variegados. Como contraste a estas visualidades heteroclitas, a esta espécie de sonho de pesadello, seguiam-se as communidades monasticas, mancha escura no dorso daquella imensa cobra, que se estirava pelas ruas de Lisboa: (…). Depois, um sem numero de cavalleiros de Christo, do Hospital, d’Aviz, de Sanctiago, precedidos dos respectivos mestres e commendadores e seguidas dos freires leigos e serventes d’armas. Depois, os magistrados da côrte, os oficiais da corôa e o próprio monarcha rodeavam a hostia triumphante nas mãos do bispo de Lisboa, e sustentavam as varas de riquissimo pallio.» (Herculano, 1847, pp. 83-85) »
Outro cronista de setecentos, identificado como I.B. Machado(3), tem registos igualmente coloridos. Foi nele que se baseou Diamantino Tojal para reconstituir a procissão: «Começou pois esta tão luzida, como assombrosa Procissão, ou Triunfo do Sacramemto, pelas bandeiras dos Officios mecânicos. (…) Immediato aos trombeiteiros se via hum Cavalleiro vestido, e calçado de ferro com viseira, e colete, montado em hum cavallo acobertado. (…) E para que tão grande concurso não degenerasse em alguma desordem, se dispoz, que todos caminhassem de dous em dous, com pausa, e modéstia. (…) Debaixo deste Palio hia o Eminentissimo, e Reverendissimo Patriarca com o Santissimo Sacramento na Custodia.» (Machado 1759, pp. 167-168, 186, 191-192).
Mal pôs termo às ofensivas castelhanas, D.João I conferiu à procissão um cunho bem nacionalista (1387), colocando-a sob os auspícios de S.Jorge guardador da pátria, cuja devoção fora trazida pelas tropas inglesas e por sua mulher – Filipa de Lancastre. Assim, acrescentou-se ao pálio com a custódia sagrada, a figura imponente do santo combatente a cavalo, com armadura de ferro, perseguindo um enorme dragão domado pela sua espada. No século XVIII, D.João V aumentou o aparato religioso e retirou de cena as figuras alegóricas. Naquele desfile majestoso, exibiam-se as múltiplas Ordens, Confrarias, Irmandades, os vários Regimentos militares e toda a espécie de corporações do reino, em traje de gala. Por tradição, o soberano assumia a primeira vara do lado direito.
Noutras paragens, os pintores esmeraram-se a imortalizar o esplendor das festas a que tinham assistido, antecipando-se às reportagens fotográficas:
ITÁLIA: Procissão do Corpo de Deus na Piazza de S.Marcos, Gentile Bellini, 1496. (Galleria dell'academia, Veneza) |
FRANÇA: «La procession de la Fête-Dieu à Toulouse», Escola de Santa Cecília, 1700. |
ESPANHA: «Procissão na Catedral de Sevilha», por Genaro Pérez de Villaamil (1807-1854). |
ALEMANHA: «Procissão de Corpus Christi», Carl Emil Doepler (1824-1905) |
Em 2018, recuperámos o essencial, com simplicidade mas igual fé. Após os cavaleiros da Guarda Nacional Republicana, um cortejo sóbrio abre o caminho ao pálio, a que preside o Cardeal Patriarca de Lisboa, acompanhado pelo clero da cidade e por milhares de gente anónima que se junta à procissão da actualidade. À nossa maneira, continuamos a cumprir o legado herdado de 1264, pois move-nos o mesmo princípio: «LOVE, not war». Curiosamente, em carne-e-osso, mantemos a versão conciliadora à portuguesa, que também visa o sentido protector dos tais guerreiros de terracota, só que percorrendo o caminho oposto, sem belicismo.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)
___________________________________
(3) Ref. bibliográfica: Machado, I. B. (1759). «Historia critico-chronologica da instituiçam da festa, procissam, e officio do Corpo Santissimo de Christo […]», Lisboa, Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno.
Sem comentários:
Enviar um comentário