É possível que muitos considerem a comunicação humana um processo banal, de tão familiar que resulta, para a maioria. No entanto, é das dimensões mais reveladoras da sofisticação da nossa espécie, no planeta. Basta lembrar que se baseia numa capacidade de representação exímia.
Como explica a antropóloga norte-americana Mary Catherine Bateson, comunicar implica dominar e manusear o efeito figurativo e simbólico para traduzir a complexidade do pensamento e o que a percepção humana capta. Aqui entra a metáfora – veículo de transmissão por excelência, que afinal não é exclusivo dos poetas, mas a ferramenta “vulgar” da linguagem humana. Mesmo quando a sua produção flui automaticamente, com a espontaneidade da respiração.
Perante esta alta fasquia partilhada pela humanidade, onde se diferenciam os que melhor se exprimem, como é o caso dos artistas?
Para alguns, começa na atitude perscrutadora e curiosa, empenhada em interrogar-se incessantemente sobre a realidade circundante e descobrir-lhe o nexo. O olhar maravilhado da criança à descoberta do mundo será o protótipo desta predisposição positiva. Para Pomar, a representação do «espanto» personifica-se na aparição do predador mais esquivo do reino animal, aqui de perfil, olhar penetrante e mandíbulas escancaradas, semi-encoberto por uma amálgama de fragmentos de corpo humano. A incorporação da literatura na pintura de Pomar é uma constante, num ambiente de forte carga simbólica, que recorda a atmosfera onírica dos contos do argentino Jorge Luís Borges.
«L'Étonnement», 1979, na fase neo-expressionista |
Os tigres superabundam no legado de Pomar, normalmente na pose felina, em que o perigo espreita.
1ª tela: «Tigre» (detalhe), Colecção Millennium BCP. 2ª tela: «A tigresa», 1978. |
Para Picasso, a maior diferença entre o artista (de todas as artes) e o cidadão comum residiria no olhar. É a conclusão partilhada por muitos outros, como Pomar. A aptidão para descortinar de forma mais intensa a realidade influenciaria o modo posterior de a representar. Aqui, o artista percorreria o trilho do cientista-investigador, também ele apaixonado pelo que lhe é dado ver.
Porém, será numa segunda etapa do processo que o artista mais pode distinguir-se da maioria, ao avançar para a dimensão «invisível», procurando chegar à essência velada sob a carcaça visível do real. Por exemplo, esta é uma marca d’água da literatura russa, tal a abundância de escritores fiéis à via clarificada pelo lendário poeta-escritor Alexandre Pushkin (1799-1837).
Mas ainda que não haja lugar a incursões capazes de suplantar a materialidade, só por si, a capacidade de representação artística já constitui uma superação notável e transfiguradora.
Júlio Pomar (1) teve o condão de renovar a realidade a partir do que via, fosse pela visão física, fosse pela memória, fosse pelo imaginário coleccionado ao longo da vida ou por outra fonte interior. Tentava sugerir uma nova perspectiva sobre a circunstância conhecida, para a reabilitar, de modo que até o cenário mais comezinho pudesse ganhar um brilho imprevisto, um interesse irresistível. Escreveu: «É pela escolha da imagem que o poeta ou o pintor usam o quotidiano. E o destino da imagem torna-se outro, desneutraliza-se, e daí o espanto das pessoas que nela já não reconhecem o que é de todos os dias. E não estão enganadas. […] Este quotidiano, tido por neutro, ou nulo, e cuja banalidade já não detém a atenção, torna-se […] trama que vem do fundo do tempo e que se lança para o desconhecido […].»
«Azenhas do mar», 1952. Num jogo de claros-escuros, revemos os recortes abruptos da costa atlântica portuguesa, talhada por rochedos angulosos, que demarcam o limite da terra firme. |
O fado, em Pomar, é castiço e popular, de tonalidades aconchegantes:
Na arena, a coragem desmedida dos forcados ou a dupla cavaleiro & cavalo empenhada em domar a força bruta do touro, impregnam o ambiente de adrenalina:
Duas telas dedicadas à festa brava, que Pomar muito apreciava |
Na fase neorrealista, de 1940s e 1950s, a crítica social e política contagiou as telas. Em 1947, esteve encarcerado 4 meses, na cela ao lado de Mário Soares. Naqueles anos, a denúncia à pobreza era a prioridade:
«O almoço do trolha», 1946-50, numa versão evocativa de um Presépio da cintura industrial das grandes cidades. |
1ª tela: «Gandanheiro», 1945. 2ª tela: «Maria da Fonte», 1957, num registo que se assemelha a uma revolta camponesa. |
«Subúrbio», habitado por jovens mães vindas do campo em busca das oportunidades que florescem nas áreas metropolitanas. |
Mestres das letras e figuras de ficção também posam para as suas telas. D.Quixote reforça o lado sonhador e a disposição para um combate etéreo, mais pessoal e distante da realidade exterior. Lembra um ícone:
Fernando Pessoa surge visionário e reflexivo, ora contracenando com escritores seus contemporâneos, ora desdobrado nos múltiplos heterónimos:
1ª tela: «Fernando Pessoa» ainda mais enigmático; 2ª tela: «Edgar (Allan) Poe, Pessoa e o Corvo», 1985. |
«Lusitânia no bairro latino (retratos de Mário de Sá Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso)». |
Poeticamente, Pomar usava a metáfora do cinema para explicar o embate desconfortável do público «não-informado» (quis chamar-lhe) com a pintura, equiparável a apanhar apenas a última imagem de um filme. Incompreensível e decepcionante. Discorrendo sobre o seu ofício:
«O que é próprio do pintor é ver. Há duas famílias de fazedores de imagens: aqueles para quem ver é sobretudo ver alguma coisa — alguma coisa de atordoador, diria Dali; e aqueles para quem ver é puro ver-estar a braços com a sua pequena sensação, diria Cézanne. Este ver situa-se num domínio que é exterior ou anterior à palavra […].
O que conta, o que faz o olhar do pintor, não é tanto fazer um quadro, como ver: ver o que se passa sobre a tela. Ali onde o quadro se faz, e durante este fazer do quadro. […] [O] acto de ver, forma a essência da pintura, e não é susceptível de ser posto em palavras. […] Por muito minuciosa que seja, a descrição de um quadro não ajuda a penetrar no seu enigma, não permite identificar o que vive no coração da obra. […] A pintura é áfona, não usa som nem palavras. Daí a afinidade com o instante de morte: na fixidez do olhar que precede a cegueira definitiva.[…]
No ateliê faço e refaço — por vezes sem sequer me dar ao trabalho de desfazer. Não só para fazer melhor. Mas também por necessidade de destruir, de remastigar uma dada experiência que não me matou a fome. […]
O meu trabalho não consiste em acrescentar, dia após dia. […] O meu trabalho alimenta-se daquilo que despedaça. […] Procedo por destruições sucessivas. Rasuro. E estou em crer que a rasura dá o (não) sentido à frase, dá o nervo à forma, dá a vertigem ao espaço.
Um quadro não me interessa senão enquanto se faz, durante o corpo-a-corpo com o que parece indizível. Sou avaro do meu prazer.
Sonho quadros que nunca terminariam, [...] um quadro […] é uma aposta. Considerá-lo, ou não, acabado implica outra aposta.
Apetece-me chamar odisseia a essa viagem que é a execução de cada quadro. […] Chamo-lhe odisseia ou via-sacra, com as suas estações em que o protagonista cai e torna a levantar-se. Mas o cenário é o da solidão […].
Balzac foi capaz de conceber, antes de Cezanne, Picasso & Co. […] o inacabamento como chave […] como paradigma da verdade em pintura, […] como abertura ao mundo.»
In «Da Cegueira dos Pintores » (INCM, 1986)
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Ainda bem que Júlio Pomar foi pródigo em acrílicos, desenhos, ilustrações, esculturas e até em palavra. É significativo que seja um artista plástico, apostado em ver, que tenha chamado aos escritos dedicados à pintura – «Da Cegueira dos Pintores ». Talvez confiasse que nem tudo se descortina pelo olhar físico.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta-feira)
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