27 dezembro 2018

Das perguntas

Então o que tens feito? Poucas frases serão mais corriqueiras no convívio entre as pessoas. Para além da pergunta demonstrar um certo interesse aparente pelo próximo, é uma variante criativa à conversa sobre o tempo. Diga-se, contudo, que o tema tempo parece não interessar tanto às gerações modernas como às antigas que eram descendentes, muito próximas, ainda, de um meio de subsistência agrícola, de olhos postos no céu de onde caíam bênçãos imerecidas e chuvas a desoras. A pergunta que encima este texto encerra, no entanto, uma dificuldade importante: a que período de tempo nos referimos? Um dia, três semanas, uma vida? Quanto tempo mediou a penúltima e última vez que vimos a pessoa a quem dirigimos a pergunta?

Vem esta divagação, ainda com odores de Natal e excesso, a propósito de uma conversa tripartida sobre redes sociais, encontros antigos, amigos de longa data perdidos da nossa memória e, quem sabe, da vida. Ouvimos, amiúde, histórias de pessoas que encontram pessoas com quem conviveram há muitas décadas, que estão iguais ou mais gordas, ou que, em tempos idos, nos suscitaram suspiros, cartas de juvenilidade arrojada e olhares perdidos sobre o nada.

Então o que tens feito? Podia ter feito esta pergunta quando, numa viagem de avião, soube o nome do comandante: havia sido meu amigo próximo no fim da década de 60 e tinha-lhe perdido entretanto o rasto. Em resposta a uma solicitação, convidou-me a ir ao cockpit; sentei-me, olhei para um adulto que não via há 40 anos e percebi nada ter para lhe perguntar, uma vez que a pergunta óbvia era de uma inutilidade igualmente óbvia: com que discernimento se pergunta então o que tens feito? a quem está aos comandos de um avião? 

Então o que tens feito? Fizeram-me esta pergunta num casamento, altura particularmente propícia para conversas vagas e de circunstância elegante. Eu já me despedira dos 50 anos e tinha pela frente alguém que fora meu amigo quando eu tinha talvez 13 anos. Como se responde à pergunta? Queres que comece por que década? Talvez o problema esteja em achar-se que cada pergunta exige uma resposta, mesmo que esta seja educada, curta e vaga, como são as melhores. Podia responder nada, mas também podia responder ando por aí, ou, melhor ainda, faz-se o que se pode. Nenhuma das respostas possíveis dizia nada de mim, porque contar uma existência de 40 anos não é contar um jogo de futebol que se resume aos golos, aos erros do árbitro e a uma sequência misteriosa de números que soma sempre dez.

Kyoto, Novembro 2018

Nunca quis ter facebook. Vivo feliz com essa opção, pese embora ter ouvido grandes defensores dessa rede social onde, diziam-me, se podem encontrar pessoas de quem nada se sabe há décadas. As duas histórias acima são elucidativas da inutilidade do facebook, se essa for uma das suas virtudes. Ao meu amigo comandante da TAP não me ocorreu perguntar-lhe nada; ao meu amigo que encontrei num casamento não me ocorreu responder-lhe nada.  

Sobre a minha vida pouco há a dizer que suscite um interesse que se prolongue por mais de um gin tónico e de um croquete redondo. Grande parte da minha existência - a que se partilha num cockpit ou numa quinta alugada para eventos - é banalidade igual à banalidade de tantas e tantas pessoas. O que não é banalidade interessa a uma minoria de pessoas, ou não se adequa sequer à dinâmica de um Boeing ou de um cocktail. A minha vida (como a vida daqueles dois interlocutores) tem momentos marcantes - perdas significativas, conquistas importantes, momentos de indizível dor ou alegria, escolhas determinantes. Esses, no entanto, não se contam em cinco minutos: requerem tempo e atenção, curiosidade continuada pelas dinâmicas humanas. 

Entre a pergunta então o que tens feito? e a música de elevador há um fio unitivo que tem tanto de imperceptível como de eficiente: a sua existência não prejudica a riqueza das nações e é um bálsamo contra o silêncio que tanto horroriza a modernidade. A pergunta e a melodia são portas que se abrem para uma potencial conversa, ou são a antecâmara para uma noite secreta e pecaminosa num quarto que se detém por uma noite. O importante é que a pergunta não requeira resposta e a noite só termine a tempo do checkout.

JdB 

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