21 dezembro 2018

Do vocabulário

Ao nível do indivíduo, as diferenças de entendimento de uma mesma palavra ou de um mesmo conceito são enormes. Alguns exemplos, apenas: aquilo a que eu chamo conservação de energia outra pessoa chamará preguiça; uso muito a expressão dívida de amizade; há quem não goste da expressão, dando-lhe um carácter menos positivo. Em bom rigor, neste último caso não me sinto obrigado a nada nem a ninguém. Sinto, isso sim, que relativamente a algumas pessoas fui beneficiário da sua atenção numa altura específica, e que isso me ficou no coração. Só talvez não possa ser devedor porque não sei se conseguirei pagar a dívida... 

Por último, um dia destes dei por mim a referir-me a uma qualidade grande que certa pessoa tinha: gratidão. Esta pessoa agradece sistematicamente o apoio, atenção e confiança que determinada família lhe deu ao longo de mais de duas décadas. Simpatizo com a ideia de gratidão, embora alguém me diga que não gosta de sentir que as pessoas lhe agradecem alguma coisa. Se acharmos que os outros não devem agradecer-nos nada, será que conseguimos agradecer-lhes convenientemente?  

Num outro plano há, entre o nosso vocabulário e aquilo que somos e fazemos, uma relação biunívoca importante: a maneira como agimos afecta o nosso vocabulário, mas o vocabulário que utilizamos também afecta aquilo que fazemos. Isto é, nas palavras de um orgulhoso empedernido, a expressão perdão faz pouco sentido (e talvez ele nunca a use), mas, se utilizarmos persistentemente a expressão perdão talvez acabemos por incorporar o seu conceito no nosso léxico comportamental. 

Também pelo referido acima é importante, para quem é crente, a frequência da igreja. De tanto ouvirmos expressões como serviço, próximo, amor, compaixão, acabamos por interiorizar a necessidade de os materializarmos em actos constantes. É muito por isso que alguma abordagem actual aos problemas alheios assentam em ideias que me são desconfortáveis, porque muito voltadas para o próprio: tens de ser feliz, tens de pensar em ti, tens de olhar para o que é bom para ti. Esta atitude de pensar primeiro em nós próprios talvez só seja válida nos aviões: em caso de despressurização da cabine, só depois de colocarmos a nossa própria máscara de oxigénio é que deveremos por a de uma criança. O léxico cristão (por oposição a um certo léxico laico) usa expressões mais voltadas para o outro, para o próximo, para os que sofrem ou precisam mais. 

A bondade - no seu sentido mais genérico - não é privilégio nem monopólio dos crentes. Mas há uma importância no vocabulário que usamos no dia a dia. Será muito difícil sermos santos se nunca proferirmos a palavra; será muito difícil percebermos o conceito de ajuda se nunca a pedirmos, alegando os mais diversos motivos.

JdB

   

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