19 junho 2019

Vai um gin do Peter’s ?

MANJERICOS COM BOA POESIA

A tradição dos versos populares de pé quebrado é muito antiga e remontará aos trovadores e jograis da Idade Média, que deambulavam de aldeia em aldeia. Seguiu-se a gravação dos dizeres mais sonantes em bilhas de barro e faianças de todos os tamanhos ou no azulejo que as tascas gostavam (muitas ainda gostam) de exibir em lugar de visibilidade. Chegaram também aos têxteis, bordados em lenços, xailes, colchas e toalhas de mesa.  

Bem à portuguesa, a tradição ganhou pujança nos serões de fado à desgarrada, improvisando-se sobre o momento para brincar com os convivas e, mais ainda, com os ausentes de peso. 
As festas dos Santos, no prelúdio do Verão, proporcionaram outro terreno fértil para esse versejar espontâneo e livre. Habilmente, a pequena quadra divertida e maximamente personalizada foi associada à “erva dos namorados” – o Manjerico – que os apaixonados ofereciam às amadas durante as festas de Junho, para selar um voto ou oficializar um pedido. Acrescentavam-lhe um cravo de papel em cor garrida e num pequeno estandarte seguia a mensagem talhada segundo a destinatária. 



A novidade foi o contributo de bons poetas para as missivas passadas através daquela planta redonda, muito aromática e de dimensões portáteis, que as felizes contempladas deviam cuidar até ao ano seguinte. Mantendo o sentido de humor e, por vezes, também o pendor didáctico de outrora, Aleixo e Pessoa terão sido dos mais pródigos e inspirados. No caso de Pessoa, nem aquelas simples composições escaparam ao seu clamor angustiado, que se ressente da incompletude da condição humana. Em toda a sua poesia perpassa sofrimento e boa dose de desilusão, a par de uma avidez de verdade segundo a sua perspectiva:  


«SE EU TE PUDESSE DIZER  /  O QUE NUNCA TE DIREI
TU TERIAS QUE ENTENDER /AQUILO QUE NEM EU SEI.» 


«Quantas vezes a memória 
Para fingir que inda é gente, 
Nos conta uma grande história 
Em que ninguém está presente.

Cantigas de portugueses 
São como barcos no mar 
Vão de uma alma para outra 
Com riscos de naufragar.

Saudades, só os Portugueses
Conseguem senti-las bem,
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm.

Depois do dia vem noite, 
Depois da noite vem dia 
E depois de ter saudades 
Vêm as saudades que havia.

Se há uma nuvem que passa 
Passa uma sombra também. 
Ninguém diz que é desgraça 
Não ter o que se não tem. 

Nuvem do céu, que pareces 
Tudo quanto a gente quer, 
Se tu, ao menos, me desses 
O que se não pode ter! 

Vai alta a nuvem que passa. 
Vai alto o meu pensamento 
Que é escravo da tua graça 
Como a nuvem o é do vento. 

O burburinho da água 
No regato que se espalha 
É como a ilusão que é mágoa 
Quando a verdade a baralha. 

Levas uma rosa ao peito
E tens um andar que é teu ...
Antes tivesses o jeito
De amar alguém, que sou eu.

Rosmaninho que me deram, 
Rosmaninho que darei, 
Todo o mal que me fizeram 
Será o bem que eu farei.»


Aleixo esgueira-se com mestria pela veia irónica, como é seu apanágio, filosofando e admoestando:

«Após um dia tristonho
De mágoas e agonias
Vem outro alegre e risonho:
São assim todos os dias.

Eu não sei porque razão  
Certos homens, a meu ver,
Quanto mais pequenos são,
Maiores querem parecer.  

Para não fazeres ofensas  
E teres dias felizes,
Não digas tudo o que pensas,
Mas pensa tudo o que dizes.»

Frei Hermano da Câmara abrilhanta uma sequência de quadras modestas com a sua voz cristalina:

«Toma lá colchetes d'oiro,
Aperta o teu coletinho,
Coração que é de nós dois
Deve andar conchegadinho.»



João de Deus replica a tal ponto o estilo tradicional, que mal se distingue do quarteto popular:

«Não digas que me amas
A ver se tenho ciúme
Os laços de amor são chamas
E não se brinca com lume.»

Honrando a língua de Camões, no Brasil descobrimos estrofes carregadas de poesia e emoção, no linguajar colorido e interpelativo das gentes do Novo Continente:

«Saudade, lembrança triste
de tudo que já não sou...
Passado que tanto insiste
em fingir que não passou...

Infância é um brinquedo usado
que um dia a vida resolve
tomar um pouco emprestado
e nunca mais nos devolve!

Ante as sandálias furadas
que entre cascalhos gastei,
não culpo o chão das estradas,
culpo os maus passos que dei!

Eu suplico: “Volte breve”,
num bilhete... e na verdade,
a esperança é quem escreve
e quem assina é a saudade!...

Meu lenço, na despedida,
tu não viste em movimento:
- Lenço molhado, querida,
não pode agitar-se ao vento!

Maria, só por maldade,
deixou-me a casa vazia...
- Dentro da casa, saudade,
e, na saudade... Maria!

A vida, às vezes, resume
contrastes deste teor:
Só se morre de ciúmes
quando se vive de amor.»

Mesmo Chique Buarque de Holanda escreveu trovas ao jeito das quadras dos manjericos, acentuando-lhes a conotação política e mais um verso para formar um quinteto. Excerto da letra de «Partido Alto»:

«Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio
 Pele e osso simplesmente, quase sem recheio
 Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio
 Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio
 Que eu já tô de saco cheio.
 […]
 Deus me deu mão de veludo prá fazer carícia
 Deus me deu muita saudade e muita preguiça
 Deus me deu perna cumprida e muita malícia
 Prá correr atrás da bola e fugir da polícia
 Um dia ainda sou notícia.»

Em excertos de outros poetas da Terra de Vera Cruz, a fidelidade ao padrão do quarteto popular português é notória, somando-se o sentido de humor brasileiro:

 «Eu [a porta] fecho a frente da casa
 Fecho a frente do quartel
 Eu fecho tudo no mundo
 Só vivo aberta no céu!»  - Vinicius de Moraes, última estrofe de «A Porta»

«Todos estes que aí estão
 Atravancando o meu caminho,
 Eles passarão.
 Eu passarinho!»   - Mário Quintana in «Poeminha do Contra»

Que não falte inspiração e alegria nas Festas dos Santos, cujo repertório poético, de algum modo, aproxima as duas margens do Atlântico e os dois hemisférios – Norte e Sul!


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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