07 fevereiro 2020

Divagações *

(Cabo Girão, Madeira, Janeiro de 2012, vislumbrando um barco perdido na imensidão)

Num destes dias disseram-me que eu me constituía demasiadamente com três ou quatro acontecimentos negativos da minha vida dos últimos anos, talvez realçando pouco o que de positivo me calhou em sorte. Ouvi e retive, porque reconheço nalgumas pessoas a capacidade de me olharem perspicazmente para além do desfocado ou de uma impressão repentista.
De facto, esta última década foi intensa. Fujo de adjectivar a intensidade com injustamente, porque nalguns aspectos a minha co-responsabilidade não é uma minudência nem um conjunto vazio. A menção sistemática destas ocorrências faz de mim um queixoso, um pessimista, um nostálgico, um negativo, um mal agradecido ou um maçador?  Pragmático como sou, reconheço que há o perigo desse olhar sobre o tema...
Há pouco mais de um ano elaborei, neste mesmo espaço, um pensamento que fui repescar, porque revela muito do que penso sobre mim: sabes, cada vez mais tenho a certeza de que não invento nada, não crio nada, não deslindo nada. Uso as palavras que outros inventaram, tenho as sensações que outros já definiram. E, no entanto, sinto muitas coisas como se fosse o pioneiro delas no mundo. Vejo-me como uma criança que usa uma gravata pela primeira vez e que responde ao fatalismo do ”já muitos a usaram antes de ti...” com o prazer singelo da descoberta: “pois eu gosto dela como se fosse o primeiro”.
É quase certo que estes dez anos fizeram de mim um homem substancialmente diferente, remetendo grande parte da vida restante para uma espécie de armário onde se guardam as memórias felizes de outros tempos. Esta década foi tão intensa que olho para o resto da minha caminhada e lhe descortino sobretudo uma sossegada e por vezes ingénua felicidade e, seguramente, um perigoso imobilismo próprio. Nada disto diminui a importância dos que se cruzaram comigo ao longo do (outro) tempo – e alguns muito proximamente –, significando apenas que conheceram um JdB fruto de uma educação, de uma circunstância e, seguramente, de genes próprios.
Vou presumir que sei onde melhorei (se bem que elogio em boca própria seja vitupério...), onde sou o que sempre fui e que, infelizmente, não mudarei. Sei ainda o que já não sou e que algumas pessoas acharão uma pena. O homem em que me tornei – ou que voltei a ser... – é consequência, não directa dos acontecimentos negativos, mas do processo de (re)construção deles derivado, e ao qual não são alheias as relações afectivas que mantive, desenvolvi ou criei.
Gosto desta ingenuidade com que olho para mim ou para o mundo que me rodeia, como a tal criança que sabe que não descobriu nada mas que, mesmo assim, se sente o inventor de uma pomada balsâmica. Vaidoso de uma resiliência que fraqueja, gosto de lembrar as pessoas a quem devo, seguramente, a sobrevivência equilibrada. Talvez seja por isso, também, que me constituo desta forma, como um recuperado que fala obsessivamente dos seus tempos de adição, porque eles lhe fazem lembrar a paz e os companheiros a quem vai falando dos dias bons. 
Ou talvez não seja, e terei de ser mais discernido.

JdB 

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* publicado originalmente em 2 de Fevereiro de 2012

1 comentário:

ACC disse...

Belíssimo texto que revisito.

Na terça feira passada, a propósito da dificuldade que todos temos em dizer as coisas certas nas horas certas, ouvi uma advogada que apenas falava sem restrições quando tinha a toga vestida.

- Quando tenho a toga vestida, digo tudo sem hesitações, sem problemas. Não me preocupo com o que possam pensar de mim.

A vida que vamos construindo, o estatuto que vamos conquistando, a identidade que vamos consolidando com base nas nossas posições afectivas e sociais, são a nossa toga.

Quando despimos a toga, tudo é mais frágil. O desconhecido sufoca e esbracejamos até encontrar uma referência, um porto conhecido. Isso está, normalmente, no passado, no armário fechado.
Se a vida nos levar para outras paisagens, a toga não precisa de estar vestida, porque é ela que nos constitui como advogado. A toga pode estar pendurada no armário pintada de uma lembrança, de uma vida que valeu, que nos levou ao local onde estarmos agora. Uma vida que, mesmo em ruptura, nos pertence, nos fortaleceu.

Não vestimos a toga, penduramos atrás da porta.

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