19 fevereiro 2020

Textos dos dias que correm

Cozinha, lugar do quotidiano e da glória

Ao longo dos séculos, o ser humano não só consumiu recursos presentes no seu ambiente – frutos e animais –, mas bem cedo aprendeu a produzi-los através da agricultura e da criação, duas atividades que lhe permitiram domesticar plantas e animais. O frumento selvagem foi transformado em grão e os animais foram introduzidas na casa, para ficarem disponíveis como alimento. Por outro lado, plantas, animais e humanos são co-criaturas, e a vocação que receberam desde o início é a de habitar juntos a Terra, de viver juntos ajudando-se uns aos outros.

A novidade para o ser humano ocorreu no dia em que se pôs a cozinhar. Concretizou alguns gestos: acender o fogo, colocá-lo sobre a carne para a assar, acompanhar a carne com alguns vegetais (uma cebola, por exemplo), banhá-la com um pouco de suco de oliveira ou de uva…, e a cozinha acontece. Desde então a cozinha transforma frutos, ervas e animais, misturando-os, cozendo-os na água ou assando-os, e a gastronomia dá os seus primeiros passos. Transmitem-se as experiência, tenta-se a criatividade, fazem-se descobertas, e a cozinha surge como o fruto do ambiente natural, mas também da cultura de um povo. Aprende-se a cozinhar vendo bem, contemplando as mãos peritas dos cozinheiros, exercitando-se a usar os utensílios necessários, procurando obter aquilo que quem cozinha quer manter secreto.

Na cozinha há exercício, busca, escolha, limpeza e rejeição, assumir a herança recebida, aventurar-se no terreno das descobertas, passar os alimentos pelo fogo de maneiras mil, fazer pratos em que resplandece a beleza, servi-los à mesa com o selo do dom e do amor. A cozinha é o lugar da arte quotidiana, mas é, sobretudo, o lugar em que cada pessoa pensa, projeta, se exercita a dar prazer aos outros. Quem cozinha, com efeito, só cozinha bem se o faz para os outros e pensando nos outros, entrando no seu desejo. Não se pode cozinhar por cozinhar: a cozinha ou tem destinatários, ou não é cozinha. Não se faz cozinha só para dar de comer (ainda que isso ocorra por falta de paixão pelas relações), mas faz-se do que comer como se predispõem os gestos no fazer o amor.

A cozinha é também um lugar de atenção para o hóspede que virá, pensando no que poderá comer, no que lhe agradará, no que lhe fará bem e mal. Em resumo, é preciso obedecer à gastro-nomia, às leis do estômago do hóspede. A cozinha, finalmente, é um lugar de glória, porque as coisas, tornando-se alimentos, pratos servidos à mesa, aumentam o peso (“kabod”, em hebraico), sofrem um processo de transformação, e o olhar é implicado no comer, tanto quanto a boca e o olfato. Cozinhar é ação só humana, não conhecida pelos outros viventes sobre a Terra. É, de facto, humanismo, porque convoca homens e mulheres, convoca plantas, animais e também minerais (o sal), cantando assim o sabor do mundo.


Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 18.02.2020

3 comentários:

Anónimo disse...

Um texto muito simples e muito rico de ensinamentos.
Acredito que apanhei a ideia, com que concordo: Cozinhar não é para nós. É para os outros.
Sem jeito, nem necessidade, não sei 'cozinhar. Mas sei como 'as coisas' se devem fazer, desde miúdo.
Só sei fazer bem ovos mexidos e omeletes (4 ovos, sem se partirem, cremosas no interior).
Mas na minha vida tenho papado as melhores comidas 'à portuguesa' feitas por mulheres.

Claro que há homens com esse dom da culinária. E não posso omitir o excelente site de Luís Pontes, Outras comidas em https://outrascomidas.blogspot.com/, lindo de se ver e se aprender.

Abraço

Anónimo disse...

Um ponto muito importante em relação ao site do Senhor Luís Pontes. É muito bem ilustrado por fotografias que mostram a evolução dos cozinhados.
Pelo menos, fica-se com água na boca.

marialemos disse...

Ah:)))))))))))))
Este texto transborda de Amor. Lê-lo de manhã, ainda por cima, é, para mim, um presente dos Céus!
Mais não sei dizer.

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