03 fevereiro 2020

Crónica de uma viagem a Paris

Viajo de Lisboa para Paris com um casal algo idoso ao meu lado. Quando vem a refeição (enfim, uma expressão eufemística para um pastel de nata incomível) a senhora informa a assistente de bordo: fazemos hoje 60 anos de casados... Há um vislumbre de alegria que se abre no rosto da funcionária: já volto, diz ela com um ar misterioso, acrescentando para mim: mas não pode dizer nada a ninguém. Imaginei tudo: palhaços, um bolo com um pau a arder, uma garrafa de champanhe que se abre e que derrama espuma para gáudio dos passageiros. Equivoquei-me: o casal foi brindado com dois copos de vinho branco (um gentil oferta, pois já tinham bebido o sumo a que tinham direito) e dois pacotes de amendoins...

Converso com o aniversariante, que está ao meu lado. Foi militar, tenente-coronel da Força Aérea, saneado após o 25 de Abril. Endireito-me na cadeira, imaginando uma conversa monotemática de ataque ao MFA. Afinal foi saneado por ser demasiadamente esquerdista, parece. E passou com alegria - que terminou em desalento - pelo PRP, onde conheceu o Carlos Antunes e a Isabel do Carmo. A esposa ainda me perguntou, com um ar de quem tem intimidade mas não domina a realidade: a mulher do Major Tomé ainda é viva? 

Amendoins pareceu-me bem. Talvez excessivo, quiçá...

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Estou numa reunião com colegas e parceiros de projecto. Às tantas, um dos anfitriões pergunta se as pessoas querem uma coca-cola. Voltando-se para mim, indaga: Joao, coke? É um rapaz afável, com quem tenho algum à-vontade. Não me inibo e pergunto alto: Thomas, do you mean a line of coke? e acompanho com o gesto de snifar uma linha. Há gente que ri, que se surpreende. Há quem se choque, porque o sentido de humor lhes é insultuoso ou se assemelha a física quântica. O Thomas manteve o nível e respondeu: after the meeting in my office.

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Há inúmeras vantagens nestas reuniões internacionais: são gente dos EUA, da Rússia, da China, da Alemanha, de França, das Filipinas, da Nova Zelândia, de Espanha. Há gente que se beija (o Thomas beija-me nas duas faces...) que estende a mão ou, no caso de uma pessoa específica, que nem quer fazer nada, tal o incómodo. Ver latinos a beijarem anglo-saxónicas é curioso. Nalguns casos há um espanto, um incómodo ou mesmo um esgar de quase repulsa. Em alturas de corona vírus, há pessoas para quem serem beijadas se assemelha a uma violação pública num bar demasiado cheio.

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O projecto que me leva a Paris é uma parceria, para alguns países específicos, entre uma fundação da L'Oreal e a Childhood Cancer International. O projecto tem três vertentes principais: uma página da internet em cada país, a definição de uma escala de emoções para crianças com cancro e a aplicação de um conjunto de massagens estudadas que têm por objectivo (re)construir a ligação entre Pais e criança doente. Contam-me duas histórias: a de uma criança que "proibiu" os pais de lhe darem banho, só os irmãos o podiam fazer. Muito provavelmente associava a presença dos pais a todos os procedimentos médicos que lhe provocavam dor, tendo desenvolvido uma reacção quase pavloviana: quando os meus pais me abraçam é sinal que vem dor...

A outra história é a de um pai (homem) que deixou de tocar no filho bebé quando este foi diagnosticado com cancro. Não havia repulsa, apenas um temor imenso de tocar e, com isso, poder provocar dor. Aprendeu o esquema de massagens que referi acima; a primeira vez que o pôs em prática chorou convulsivamente.

É isto, no fundo.

JdB

1 comentário:

ACC disse...

e é muito, no fundo

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