31 março 2021

Vai um gin do Peter’s ?

 PALACETES MENOS CONHECIDOS DE LISBOA – II PARTE 

A completar o passeio pelos palacetes da «Lisboa Secreta», iniciado no gin anterior (17-Março), segue o segundo grupo de casarões do passagem do século XIX para o XX. De certo modo, sabem a segredos bem guardados pelos lisboetas e demais conhecedores dos recantos menos badalados da capital. Estão, obviamente, excluídos das rotas típicas do turismo comum talhadas para estadias de curta duração, que não esticam para além dos monumentos históricos.

[cont. de 17.Março]

«Roteiro por palacetes de outros tempos que merecem ser eternizados

Palacete Mendonça

Desde 1909, ergue-se na Avenida Marquês de Fronteira, 18-28, o Palacete Mendonça. O projeto deste palacete localizado no alto do Parque Eduardo VII foi do arquiteto Miguel Ventura Terra. Ganhou o Prémio Valmor em 1909 e alberga, atualmente, a sede mundial do movimento Ismaili Imamat.

Foto: Paulo Guedes (post. 1909) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete Silva Graça

Construído em 1907 no cruzamento da Av. Fontes Pereira de Melo com a Rua Latino Coelho, o Palacete Silva Graça começou por ser a casa do fundador do jornal O Século, José Joaquim da Silva Graça. Por volta de 1930, começam as obras de transformação do palacete num hotel de luxo, que acabariam em 1933. Nasceu, assim, o luxuoso Hotel Aviz, cuja demolição aconteceu em 1962. Neste espaço situa-se, hoje em dia, o Sheraton. O projeto foi também do arquiteto Ventura Terra

Foto: Paulo Guedes (post. 1908) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete Seixas

O Palacete Seixas foi construído no início do século XX num estilo romântico de inspiração francesa, muito popular no final do século XIX. É o único edifício centenário da Praça Marquês de Pombal e alberga, desde 1997, a sede do Instituto Camões.

Foto: Paulo Guedes [19-] | Arquivo Municipal de Lisboa (Palacete Seixas à direita)

Casa Museu Doutor Anastácio Gonçalves, antiga Casa Malhoa

Localizada na Avenida 5 de Outubro, este palacete resistiu aos tempos e é, atualmente, um espaço museológico. O projeto, do arquiteto Manuel Norte Júnior, ganhou o prémio Valmor em 1905 e o edifício foi a casa e atelier do pintor José Malhoa, seu antigo proprietário. Em 1933, foi adquirido pelo Dr. Anastácio Gonçalves, que o doou ao Estado

Foto: Paulo Guedes (post. 1905) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete da Rua Tomás Ribeiro

Construído em 1909, este edifício foi pensado pelo arquiteto António C. Abreu e obteve a 4ª Menção Honrosa do Prémio Valmor desse ano. Situava-se na Rua Tomás Ribeiro, 4 – 7, na zona das Picoas, e foi demolido em 1954.

Foto: Paulo Guedes (c. 1909) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete na Avenida Fontes Pereira de Melo

Ainda existente e bem conservado, este palacete situa-se na Av. Fontes Pereira de Melo, 28, e começou por ser uma moradia unfamiliar. O arquiteto foi Manuel Norte Júnior, um dos mais requisitados de então, e a construção obteve o Prémio Valmor de 1914. Desde 1954, é ocupado pelo Metropolitano de Lisboa.

Foto: Paulo Guedes (c. 1914) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete Branco Rodrigues

De nome completo Casa de José Cândido Branco Rodrigues, este palacete foi assinado pelo arquiteto Manuel Norte Júnior e a sua construção seria finalizada em 1908. Situava-se na Avenida da República, 36 e, devido à sua beleza, conquistou a Menção Honrosa no Prémio Valmor desse ano. Foi demolido por volta de 1950.

Foto: Paulo Guedes (c. 1908) | Arquivo Municipal de Lisboa

De  Inês Santos • Janeiro 29, 2021, em 

https://lisboasecreta.co/os-antigos-e-charmosos-palacetes-de-lisboa/

A «Lisboa Secreta» oferece, assim, boas dicas para se alargar os passeios digestivos deste desconfinamento gradual, talvez a calhar em cheio para quem passe a Páscoa em Lisboa. Ajudará a redescobrir a cidade com o sossego inspirador a que esta quadra convida.  

Boa & Santa Páscoa a todos, onde quer que a vivam!

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

29 março 2021

Textos dos dias que correm *

 A audácia da vulnerabilidade, a profecia de uma visão

É sabido que vivemos na era da padronização das imagens. Em nenhuma época anterior da história foram produzidas tantas imagens e, além disso, nenhuma outra como a nossa testemunhou a sua radical banalização. Em vez de imagens únicas e autênticas, temos produtos fabricados em série, selfies fabricadas num instante e num instante prontas para serem devoradas pelo esquecimento. O filósofo Walter Benjamin falou com razão em "perda da aura", ou seja, a imagem deixa de constituir "a única aparência de uma coisa distante" e passa a fixar-se na repetição sonâmbula de um déjà vu. Por isso, o comovente consenso em torno da imagem do Papa Francisco na praça de São Pedro vazia é algo que nos faz pensar, dentro e fora do espaço eclesial.

Um ano depois, vale a pena revisitar aquela imagem, que na realidade nunca deixou de estar presente, e indagar de onde vem o seu excepcional poder icónico. Por que é que essa imagem que ficou ainda representa o que estamos a viver e não qualquer outra imagem? E o que é que isso nos revela sobre ela mesma, ou o que nos ensina sobre nós próprios? Procurando sintetizar o que certamente merece uma reflexão mais ampla, indicaria quatro motivos.

A ousadia de habitar a vulnerabilidade como lugar de experiência humana e crente. É verdade que a cultura dominante, o mainstream modelado como um automatismo pelas nossas sociedades de consumo fez da vulnerabilidade uma espécie de tabu. A fragilidade está sujeita a ocultação. E, ao impedirmo-nos de enfrentar o sofrimento humano, cada vez menos sabemos como nos reconhecermos nele, ou como partirmos dele para aprofundar o sentido da nossa humanidade comum. Mas esse não é apenas um problema da cultura actual. A performance religiosa também tem alguma dificuldade em integrar o que Michel de Certeau chamou "fraqueza de acreditar". A imagem que se transmite é mais a de uma operação efectuada a partir de um guião do que de desapropriação e abertura para criar um "caminho não percorrido". O Papa Francisco ousou habitar a vulnerabilidade. Ele não falou apenas sobre a vulnerabilidade do mundo, como se estivesse fora dela. Na medida em que aceitou expor-se como qualquer pessoa, surgiu como uma figura sacerdotal capaz de representar todos.

A audácia de abraçar e devolver sentido ao vazio. Uma das experiências mais impactantes do confinamento foi testemunhar, no início da pandemia, o esvaziamento das cidades. De um momento para o outro espalhou-se um silêncio estranho e desconhecido. Incrédulos, olhávamos das nossas janelas para as ruas e praças em total solidão, sentindo-nos despojados do mundo. A nossa primeira reacção foi ler o vazio como algo hostil que nos ameaçava. Pois bem, Francisco teve a grande sabedoria de abraçar o vazio em vez de repudiá-lo, sublinhando o seu potencial simbólico e revelador. Por isso foi muito importante o texto escolhido para o Evangelho, cenário da tempestade acalmada segundo Mc 4, 35-41. Porque se, por um lado, o vazio foi aceite, abraçando-o como lugar existencial e teológico, por outro, a Palavra de Deus forneceu a chave para dar-lhe sentido. O vazio tornou-se um barco. “Percebemos que estávamos no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários, todos chamados a remar juntos, todos a precisar de consolo uns nos outros. Neste barco… estamos todos lá ”. O vazio ofereceu uma nova gramática para nos descobrirmos, não como fragmentos isolados, mas como Fratelli Tutti.

A audácia de encontrar uma metáfora. Comentando o texto do Evangelho de Mc 4, 35-41, o Papa Francisco fez um gesto de grande importância: reorientou a percepção a respeito da pandemia. Os primeiros Chefes de Estado a falar referiram-se à pandemia como uma guerra, uma metáfora até certo ponto compreensível, mas muito equívoca e com muitos perigos à espreita. O Papa foi o primeiro a falar disso como uma tempestade. Essa passagem do estreito plano beligerante para o plano cosmológico coincidiu com um alargamento da visão. Permitiu, por exemplo, desmantelar o impulso inicial de encontrar um culpado, aceitando em vez disso que a tempestade nos atraiu a todos para uma vulnerabilidade que não queremos ver e que nos envolve numa reconstrução que nos compromete globalmente. Este tempo de prova representa, portanto, um tempo de escolhas novas e proféticas que nos unem, em vez de intensificar o triunfo da lógica dos conflitos e das partes.

A audácia de pregar Deus no silêncio de Deus. As tempestades são experiências de crise, até para os crentes. Há um escândalo implícito no grito dos discípulos que tentam despertar Jesus: "Mestre, não te preocupas que estejamos perdidos?" (Mc 4, 38). Como explica o Papa, esta “é uma frase que fere e desencadeia tempestades no coração”. Perante a propagação do mal e a sua proximidade traumática, sentimos com sofrimento o que parece ser o silêncio incompreensível de Deus, e a grande tentação nesses momentos é o niilismo ou a desmobilização. Sobre o poder das imagens, Heidegger escreveu que "a essência da imagem é mostrar algo". A imagem do Papa a rezar e a dar a bênção eucarística, num contexto universalmente vivido como de desolação, mostra como o invisível de Deus penetra os blocos da história e o seu silêncio nos dá a possibilidade de viver, seguindo os passos de Jesus, as situações de abandono como confiança e entrega nas Suas mãos. Francisco pediu: "Desta colunata que abraça Roma e o mundo, que a bênção de Deus desça sobre vós como um abraço consolador". E assim foi.

D. José Tolentino de Mendonça

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* tradução livre minha de um artigo publicado aqui

28 março 2021

Domingo de Ramos

LEITURA II - Filip 2, 6-11

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Filipenses

Cristo Jesus, que era de condição divina,
não Se valeu da sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-Se a Si próprio.
Assumindo a condição de servo,
tornou-Se semelhante aos homens.
Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou
e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem
no céu, na terra e nos abismos,
e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.

26 março 2021

Poemas dos dias que correm

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

*

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill, in 'Poesia Completas'

24 março 2021

Porque gostamos do que gostamos?

 



***

Esta espécie de sanduíche mal amanhada de obras de arte e poesia (ou versos, sei lá eu...) tem uma lógica por trás. Antes de me deitar à lógica queria informar que deixei de fora desta escolha a música, por ser um capítulo à parte e não se enquadrar totalmente no devaneio em causa.

Ora então, de cima para baixo:

1. Santa Cecília, Stefano Maderno, 1600;
2. Excerto do poema Fado Português, da autoria de José Régio;
3. Ronda da noite, Rembrandt, 1642;
4. Excerto do fado Há Festa na Mouraria, da autoria de Gabriel de Oliveira

***

Temos, portanto, um quadro, uma escultura, um poema (que foi cantado) e uns versos que talvez tenham sido compostos para serem cantados. Um escultor, um pintor, um poeta / escritor e um poeta popular. O que os une? O facto de eu gostar muito de tudo o que aqui apresentei.

Porque gostamos do que gostamos? É apenas uma aspecto estético? É natural que não gostemos daquilo que nos repugna, nos assusta, nos deprime ou que achamos muito feio. Porém, no meio de tantas esculturas fantásticas, tantos quadros fantásticos, tantos poemas fantásticos, por que motivo escolhi eu estes? E, no caso dos poemas, porque escolhi estes excertos específicos e não outros? O que tem a expressão lindeza tamanha, ou olhar ceguinho de choro que não tem  O Fado nasceu um dia / quando o vento mal bulia com que abre o poema? 

Não tenho resposta. E já não tinha resposta quando, há exactamente quatro anos, aqui escrevi sobre os fascínios inexplicados. Em quatro anos, o ciclo de uns Jogos Olímpicos, nada aprendi. 

Será o punctum de que falava o Barthes? Será uma "energia do incidente" essa pulsão que nos leva a olhar para uma sessão de pancadaria na rua, movidos por um fascínio inexplicável? A estética das coisas é apenas sensorial, isto é, gostamos ou não gostamos, ou há pormenores que nos remetem para algo? Se sim, para que me remete a Ronda da Noite ou os três versos de Gabriel de Oliveira?

Se eu tivesse aqui posto música o raciocínio não oferecia dúvidas. Grande parte da música pop que oiço remete-me para um momento, para uma memória, para uma fase da minha vida, para uma emoção: o primeiro beijo, o escurinho do cinema, uma mão dada, a adolescência feliz. Na música clássica são os movimentos lentos, porque os acho centrípetos, como o Outono ou o cair da noite.

Talvez daqui a quatro anos já saiba as respostas às minhas dúvidas. Não percamos a esperança.

JdB

21 março 2021

V Domingo da Quaresma

EVANGELHO - Jo 12, 20-33

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
alguns gregos que tinha vindo a Jerusalém
para adorar nos dias da festa,
foram ter com Filipe, de Betsaida da Galileia,
e fizeram-lhe este pedido:
«Senhor, nós queríamos ver Jesus».
Filipe foi dizê-lo a André;
e então André e Filipe foram dizê-lo a Jesus.
Jesus respondeu-lhes:
«Chegou a hora em que o Filho do homem vai ser glorificado.
Em verdade, em verdade vos digo:
Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só;
mas se morrer, dará muito fruto.
Quem ama a sua vida, perdê-la-á,
e quem despreza a sua vida neste mundo
conservá-la-á para a vida eterna.
Se alguém Me quiser servir, que Me siga,
e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo.
E se alguém Me servir, meu Pai o honrará.
Agora a minha alma está perturbada.
E que hei de dizer? Pai, salva-Me desta hora?
Mas por causa disto é que Eu cheguei a esta hora.
Pai, glorifica o teu nome».
Veio então uma voz do céu que dizia:
«Já O glorifiquei e tornarei a glorificá-l'O».
A multidão que estava presente e ouvira
dizia ter sido um trovão.
Outros afirmavam: «Foi um Anjo que Lhe falou».
Disse Jesus:
«Não foi por minha causa que esta voz se fez ouvir;
foi por vossa causa.
Chegou a hora em que este mundo vai ser julgado.
Chegou a hora em que vai ser expulso o príncipe deste mundo.
E quando Eu for elevado da terra,
atrairei todos a Mim».
Falava deste modo,
para indicar de que morte ia morrer.

19 março 2021

Das perdas e do desaparecimento da memória

Fui ontem à missa de corpo presente de um primo, que morreu de COVID ou de complicações derivadas de uma estadia no hospital por causa do vírus. Tinha 75 anos e era um homem bastante saudável.

Cheguei aos 63 anos com um lastro de mortes razoavelmente normal, com uma excepção, que não segue neste raciocínio. Aqueles que perdi suscitaram-me sensações diversas: desgosto, pena, saudade, tristeza. Como é natural, todos abriram um buraco no coração, embora de tamanhos diferentes. Admito que nalguns buracos, por não haver grande proximidade com quem o abriu, só caberia um alfinete fininho. Falo de amigos próximos, de família próxima.

Foi com a morte dos meus pais (ambos na casa dos 90 anos, mais ou menos) que o meu sentimento mudou; deixei de ter a ideia do nunca mais vejo esta pessoa para formular uma pergunta: o que desaparece com a morte desta pessoa? Poderia fazer este exercício retrospectivamente ao pensar na morte do meu sogro, de uma cunhada, de um irmão ou de um amigo, mas talvez tenha menos importância agora. Com a minha mãe morreu a ideia  - talvez o conceito - de incondicionalidade. Com o meu pai morreu a ideia de memória. Penso que já partilhei esta ideia neste estabelecimento.

A morte deste primo atingiu-me. Não éramos da mesma idade, não confraternizávamos muito, passámos anos sem nos vermos; foi na última meia dúzia de anos que nos cruzámos mais, que conversámos mais. O que desapareceu com a morte desta pessoa? A memória. E talvez tenha percebido, na morte antecipada e injusta deste meu primo - um homem com vigor, com actividade, com conversa - que a memória tem uma importância grande na minha vida. Tem isto a ver com o facto de ser confrontado com o desaparecimento da geração acima e, por isso, estar eu na linha da frente? Não sei. Talvez seja mais do que isso - ou apenas diferente disso. Ter memória é ter vivido -  ou ter conhecido quem viveu - aquilo que fez de nós o que nós somos, aquilo que povoa o livro de História da nossa existência. 

Não é o futuro que me constrói, porque não se sabe se existe futuro; é no que já foi  - nas histórias de avós, de bisavós, de costumes, de traições, de negócios ilícitos, de vidas desperdiçadas, escondidas ou dedicadas, de relações curiosas - que eu defino a trama da minha vida. Saber sobre o meu passado é conhecer-me melhor, mesmo que não tenha interagido com a pessoa cuja vida escavo. O passado da minha família interessa-me: pode ser a resposta à pergunta quem comprou determinada quinta? ou sabe se fulano teve um caso com fulana? 

Com a morte deste meu primo desaparece uma parte substantiva de uma memória importante. Não a memória que fica nos livros, em forma de diário ou de cartas trocadas, mas a memória das coisas sobre as quais não se escreveu, mas que alimentam conversas, conjecturas, proximidade. Com o desaparecimento de duas pessoas que, curiosamente tinham o mesmo nome, as minhas fontes de informação sobre um certo passado familiar secaram, Em bom rigor, não me sobra quase ninguém que esteja acessível. Se isto não é, também, uma perda, não sei o que será uma perda.

JdB

17 março 2021

Vai um gin do Peter’s ?

PALACETES MENOS CONHECIDOS DE LISBOA – I PARTE

No portal «Lisboa Secreta» surgiu um itinerário com obras de arquitectura, que passam despercebidas à maioria. LX SECRETA pertence a um grupo de comunicação, que é membro da rede internacional Secret Media Network (https://secretmedianetwork.com/), fundada com o propósito de dar a conhecer o lado menos visível e mediático das metrópoles por esse mundo fora, seguindo o lema «Your city’s secrets».

No portal alfacinha, a resenha de palacetes românticos da Lisboa antiga foi publicado a 29 de Janeiro, abrangendo um conjunto de edificações construídas entre o final do século XIX e o início do XX.

«Roteiro por palacetes de outros tempos que merecem ser eternizados

No início do séc. XX, Lisboa era detentora de edifícios bem carismáticos que acentuavam o charme burguês da cidade.

Os palacetes eram obras de traço arrojado e beleza inigualável — alguns foram até agraciados com o Prémio Valmor, que distingue, desde 1902, a qualidade arquitetónica de novos edifícios. Eis um roteiro por palacetes de outros tempos que merecem ser eternizados!

Palacete Empis

Localizado na Avenida Duque de Loulé, 77, a Casa Empis foi desenhada pelo arquiteto António Couto de Abreu. Em 1907, arrecadou o Prémio Valmor — segundo a CML foi, aliás, “o primeiro edifício premiado com Valmor a ser demolido, em 1954, ocupando atualmente o seu lugar um edifício de 7 andares”. O seu estilo arquitetónico define-se como Francisco I.

Foto: António do Couto Abreu (c. 1907) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete neo-manuelino no Campo Grande

No início do séc. XX, este era um dos vários palacetes que povoava o Campo Grande. Acabaria por ser demolido em 1951 aquando da construção da Cidade Universitária.

Foto: Paulo Guedes (19–) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete “Casa da Cerâmica”

No cruzamento do nº 5 da Rua Braamcamp com a Rua Mouzinho da Silveira existiu um palacete apelidado de “Casa da Cerâmica”. Seria demolido a meio do séc. XX.

Foto: Paulo Guedes (19–) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete Valmor

O Palacete Valmor é dos poucos edifícios que chegou aos dias de hoje e chegou a ser, em 2019, uma Guest House. Localizado no cruzamento da Avenida da República, 38, com a Visconde Valmor, foi edificado em 1906 com projecto do arquiteto Miguel Ventura Terra. Obteve, nesse mesmo ano, o prémio Valmor.

Foto: Paulo Guedes (19–) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete na Praça Duque de Saldanha

Localizado na esquina entre a Praça do Saldanha, 12, e a Avenida da República, este belo palacete é outro dos poucos edifícios do início do século XX que ainda resistem. Terá sido edificado entre 1907 e 1908 com inspiração art-deco e acredita-se que o projeto foi de José Luís Monteiro. Chegou a ser sede de campanha de Mário Soares, que aqui discursou quando conquistou a Presidência da República. Ganhou a Menção Honrosa no Prémio Valmor de 1912.

Foto: Paulo Guedes (c. 1912) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete da Avenida de Berna

Edificado em 1909, este palacete é ainda um dos belos edifícios que Lisboa ainda possui. O projeto foi do arquiteto Manuel Norte Júnior e foi das primeiras construções habitacionais da Avenida de Berna. Ocupa, portanto, o gaveto dessa avenida com a Avenida da República. Representa uma fusão de estilos arquitetónicos, com destaque para a Arte Nova, e chegou a ser sede da EMEL até 2013. Atualmente é propriedade da Junta de Freguesia das Avenidas Novas.

Foto: Estúdio Horácio Novais (post. 1933) | Arquivo Municipal de Lisboa

Palacete na Avenida da Liberdade

Situado no cruzamento da Avenida da Liberdade, 193, com a Rua Barata Salgueiro, este belo exemplar está ainda de pé. Define-se como um palacete romântico de final do século XIX e, desde 2018, é concept store da marca Massimo Dutti.»

Foto: Paulo Guedes (19–) | Arquivo Municipal de Lisboa


I Parte da peça de Inês Santos, 

Publicada a 29-Janeiro-2021

No próximo “gin” seguirá a segunda parte da colecção de casarões, que ainda perduram por Lisboa e apetece (re)ver nos passeios tranquilos pela cidade, que precisa de tempo e atenção para revelar os seus muitos segredos.  

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

15 março 2021

Das conversas

Sigamos cronologicamente. 

  1. Seis sessões de coaching com uma profissional inglesa. 
  2. Um artigo que o Padre Tolentino Mendonça escreveu para o Expresso (24 de Agosto de 2019), intitulado Conversem uns com os outros. 
  3. Um texto Transformando sofrimento em narrativa e narrativa em uma nova vida (Tatiana Piccardi, EFLCH/Universidade Federal de São Paulo, Brasil).
Nas três ofertas de que fui beneficiário há mais em comum do que a generosidade, ou o facto de provirem de mãos amigas, pormenor que é despiciendo. O fio que liga as três referências acima é a conversa ouna expressão afortunada da académica, ato de fala curativo feliz. As três realidades referidas acima são diferentes: (i) sessões de aconselhamento profissional, (ii) aspectos da vida social ou (iii) dinâmicas em grupo de pais em luto. No entanto, em todas elas há esta ciência do encontro (Pe. Tolentino) que nos interliga com o(s) outro(s), esta experiência ancestral de contar e trocar histórias de vida (T Piccardi).

No decurso de uma entrevista, e falando com algum conhecimento de causa, afirmei que não havia nada pior para um Pai que passa por esta experiência do que a sugestão alheia de se falar temas ligeiros. Muitas vezes os pais querem exercer esta fala curativa feliz, querem contar uma história, partilhar uma experiência, alumiar um buraco negro que têm dentro de si. Como diz T Piccardi, [t]odas as mães e o pai presentes nas reuniões relatam sua dificuldade principal: a falta de ouvintes para suas histórias, para as histórias de vida e morte de seus filhos. Reclamam que a vida segue, em pouco tempo as pessoas se esquecem dessas crianças que se foram, e os pais ficam sós, sem ter com quem falar, sem ter quem ouça as histórias inesquecíveis que constituem a vida de cada filho morto. Não resisto, por isso, a citar outro texto do Pe. Tolentino, já publicado neste estabelecimento: 

(...) Um dos textos mais impressionantes sobre o valor da escuta é o conto “Tristeza” de Tchékov. Conta a história de um cocheiro, Iona, que perdeu um filho e não encontra, entre os humanos, ninguém disponível para o amparar. «Precisa contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu... Precisa descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a filha Aníssia... Precisa falar sobre ela também...», mas ninguém o ouve. O cocheiro volta-se então para o seu cavalo e enquanto lhe dá aveia começa a expor-lhe, num longo e dorido monólogo, tudo o que viveu. E as últimas palavras do conto são estas: «O cavalo foi mastigando, enquanto parecia escutar, pois soprava na mão do seu dono... Então Iona, o cocheiro, animou-se e contou-lhe tudo».    

Durante seis semanas, oferta de quem achou que talvez ajudasse à minhas responsabilidades internacionais, tive a experiência inédita do coaching via zoom com uma técnica inglesa, ex-jornalista da BBC. O que fizemos durante seis horas no total? Conversámos. Não estabelecemos objectivos, não desenhámos um roadmap, não discutimos estratégias, embora tivéssemos pensado e falado sobre isso. Durante seis horas fiz da palavra partilhada um reduto e um alimento (Pe. Tolentino) tendo encontrado, numa total desconhecida, um eco mais purificado das minhas palavras pensadas num inglês imperfeito. Não fiz catarse, não falei do passado doloroso ou da precisão das memórias; falei e ouvi e, talvez mais importante, ouvi-me. O reflexo das minhas palavras chegou-me mais nítido, mais pedagógico, mais construtivo, mais depurado. À despedida, e repetindo uma fórmula usada e abusada, agradeci por alguém ter ouvido o que eu queria dizer a mim próprio, um homem numa circunstância específica, com responsabilidades específicas. 

Conversar é uma palavra onde cabem muitos mundos: conversamos para aprender, para desabafar, para nos ouvirmos. Como diz o Pe. Tolentino, [f]requentar os outros capacita-nos para o encontro connosco mesmos e o conhecimento próprio dá-nos chaves para viver a aventura da alteridade. Num certo sentido, a conversa é um livro pré-Gutemberg e, por isso, um acto único que deve ser preservado e acarinhado. É um exercício de oralidade, sujeito à economia da memória ou da (pouca) atenção que damos aos outros, porque o tempo é o do ecrã, da voragem e do imediatismo, do desejo de leveza e de sucesso. Iona e os pais brasileiros em luto vivem realidades iguais: não só perderam os seus filhos para a morte como não têm interlocutores. O cocheiro socorreu-se do cavalo, os pais recorreram aos grupos de ajuda; em ambos os casos tudo é monólogo, porque não há interlocutores com quem exercer o gosto da troca. Não basta que nos oiçam, nem sempre queremos que nos digam. Mas no coração dos que sentem a vantagem da conversa há sempre o desejo de um compasso partilhado. 

JdB

14 março 2021

IV Domingo do tempo da Quaresma

EVANGELHO: Jo 3, 14-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
disse Jesus a Nicodemos:
«Assim como Moisés elevou a serpente no deserto,
também o Filho do homem será elevado,
para que todo aquele que acredita
tenha n'Ele a vida eterna.
Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito,
para que todo o homem que acredita n'Ele
não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Quem acredita n'Ele não é condenado,
mas quem não acredita já está condenado,
porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus.
E a causa da condenação é esta:
a luz veio ao mundo
e os homens amaram mais as trevas do que a luz,
porque eram más as suas obras.
Todo aquele que pratica más ações
odeia a luz e não se aproxima dela,
para que as suas obras não sejam denunciadas.
Mas quem pratica a verdade aproxima-se da luz,
para que as suas obras sejam manifestas,
pois são feitas em Deus.

11 março 2021

Porque lês?

Porque lês?

Fiz esta pergunta um dia ao jantar com dois amigos. Um lia porque tinha uma curiosidade insaciável por tudo; o outro - cuja resposta não me lembro - talvez lesse como entretém, ou como curiosidade saciável. Já não me lembro qual foi a minha resposta. Talvez achasse, ingenuamente, que o expandir da consciência pudesse fazer de mim uma pessoa melhor. 

De um determinado ponto de vista, há quem pense que a cultura, a abertura do espírito, a aquisição de novos conhecimentos, ou de novas realidades, aperfeiçoa o ser humano, faz dele alguém melhor, porque o imbui de uma maior tolerância. Há quem pense exactamente o contrário: um acréscimo de cultura não se traduz num acréscimo de perfeição.

Dissequemos de forma provocadora: é um dado adquirido que a leitura é benéfica e, por isso, se faz pressão sobre o governo para desconfinar as livrarias. De um ponto de vista meramente económico, ou de protecção sanitária, uma livraria é igual a uma loja de retrós, a uma florista ou a uma chapelaria. Ora, a pressão sobre a livraria tem um intuito não exclusivamente económico: entende-se que há um acesso à cultura. Significa isto que, sob um determinado ângulo, ler é mais importante do que comprar carrinhos de linhas ou cheirar gladíolos.

Ora, o que faz a leitura de Pra Cima de Puta, de Cristina Ferreira, pela riqueza moral das nações? E A Minha Luta, de Adolf Hitler, tem uma influência positiva na formação do ser humano?  Eu, Carolina, escrito por uma das mulheres de Pinto da Costa, promove a expansão da nossa consciência? E se forem as memórias de um assassino em série ou de um corrupto condenado? Obviamente que este parágrafo é caricatural. Podemos falar no Eça, que é mais consensual; mas O Crime do Padre Amaro promove as vocações ou gera confiança na Igreja? 

É preciso perceber o que faz o livro pelas pessoas: é cultura? É uma sequência de momentos aprazíveis? É a satisfação de uma curiosidade insaciável? Se o livro (como representante da cultura, para efeitos deste texto) acrescenta valor às pessoas, temos de perceber porquê. Se é apenas um entretém (por melhor que seja), o gozo de uma experiência salutar ou a construção de novos mundos interiores, então ler pode ser como comprar orquídeas, fazer crochet ou comer um superior bacalhau à Brás. 

A leitura de um livro mau, cheio de inumanidades, fará menos pela saúde mental das pessoas do que uma refeição equilibrada e vagarosa, do que um concerto ou, porque não, do que a contemplação de um quadro. No entanto, um livro desconfinado parece ser sinónimo de uma cultura acessível, tudo isto num país onde não se lê, onde se publica muito lixo e onde uma pessoa que escreve uma coisa informa que é escritora de profissão.  

Termino o texto provocador com disclaimers: gosto muito de ler; gosto do Eça, da Cristina Ferreira nem sequer como pessoa. Se a leitura faz de mim melhor pessoa? Tanto como ter uma boa conversa com um amigo, ter uma refeição cuidada e lenta ou ouvir o Requiem de Mozart. São momentos de paragem, de partilha, de elevação. Se concordo que se devem desconfinar as livrarias? Gosto de pensar que sim, enquanto há tempo. Talvez daqui a duas gerações não se leia um romance, por não haver vagar ou concentração para tal. Tenho em minha posse uma mesa de casa de jantar; talvez daqui a duas gerações seja uma peça icónica, como o primeiro telefone ou aquilo que se diz ser um preservativo do tempo dos faraós, e que eu vi no museu do Cairo. 

O que liga um romance, uma mesa de sala de jantar ou um preservativo faraónico? A transitoriedade das coisas transformadas em obsolescência ou em peça de museu. Ou a ideia, em declínio, de que cultura torna as pessoas melhores.

JdB           

10 março 2021

Textos dos dias que correm

O Mérito da Monotonia

A capacidade para suportar uma vida mais ou menos monótona deve ser adquirida desde a infância. A este respeito, os pais modernos são bastante censuráveis; proporcionam aos filhos demasiados prazeres passivos, tais como espectáculos e guloseimas, e não compreendem a importância que tem para uma criança um dia ser igual a outro dia, excepto, é claro, nalgumas raras ocasiões. Em geral, os prazeres da infância deveriam ser aqueles que a própria criança descobrisse no seu ambiente por meio de algum esforço e imaginação.
Os prazeres que excitam e ao mesmo tempo não implicam qualquer exercício físico, o teatro por exemplo, só lhes seriam facultados muito raramente. A excitação é da mesma natureza dos narcóticos que cada vez se tornam mais exigentes, e a passividade física durante a excitação é contrária ao instinto. Uma criança desenvolve-se melhor quando, tal como uma jovem planta, a deixam tranquila no mesmo solo. Demasiadas viagens, demasiadas variedades de impressões, não são boas para as crianças e tornam-nas mais tarde, quando forem crescidas, incapazes de suportar uma monotonia fecunda. Não quero dizer que a monotonia tenha algum mérito em si mesma; quero sómente afirmar que algumas coisas boas não são possíveis senão quando há um certo grau de monotonia.

Bertrand Russell, in "A Conquista da Felicidade"

09 março 2021

Da comida saudável

 


Este livro, do qual sou fiel e transiente depositário (e que guardo com desvelo) é, todo ele, um conceito. Numa leitura rápida e distraída, poderia ser uma antologia breve de receitas de cozinha de um campo de concentração. Entre Bergen-Belsen e Bircher-Benner não há uma diferença fonética substantiva. Os olhos fechados remeter-nos-iam para esse período negro da nossa História.

(a talhe de foice, li algures, a propósito da polémica recente de Os Maias, que a expressão "período negro" poderá ter agora conotações racistas...)

Ora o livro trata, não de fórmulas gastronómicas da barbárie, mas de um conjunto de receitas saudáveis desenvolvidas por "Mme. Kunz-Bircher e seus colaboradores da clínica do Dr. Bircher-Benner".

Um livro com esta capa suscita pensamentos vários - e calóricos. Num certo sentido, regular a arte da cozinha através de um título como "a saúde pela natureza" é regular a vida através de uma bula, com indicação de princípios activos, de efeitos secundários, de posologia. A prática de comer é, acima de tudo, uma prática de prazer; o gosto, o contentamento, a satisfação precedem a saúde, não lhe estão dependentes. Ninguém avalia um cozido à portuguesa em termos de desperdício de vida, ninguém deglute umas iscas à portuguesa pela fonte de ferro, e o deleite de um bacalhau assado não se mede em proteínas. 

Por outro lado, a ideia do crudivorismo, no qual o livro se espraia (segundo o dicionário, regime de alimentação em que apenas há ingestão de alimentos crus e não processados) é a racionalização do êxtase, como se o desvario fosse acompanhado de uma tabela. Uma cenoura crua deixa de ser uma sensação aprazível para se transformar num entrada no Olimpo da saúde; um elemento processado desnecessariamente é um quase pecado, algo que deveria fazer-se no remanso do lar, de cortinas fechadas, resguardado de olhares zelosos.  

O vegetarianismo é a comida saudável levada (e não elevada) a um novo patamar. Excluídas as intolerâncias alimentares, é uma opção de vida toda assente no não: repete-se ad nauseam o não como isto, o não como aquilo. O vegetariano - ou o militante da comida saudável, que são irmãos - é o fundamentalista da religião, o falso pudico que só fala em falta, em culpa, em castigo, que vê num seio levemente descoberto a perdição da alma e a Geena do incréu. Um intestino que se quer furiosamente saudável é uma alma que se quer furiosamente comedida.  

Na página 178 do livro em apreço há um alerta particularmente interessante. Cito (negritos no original):

Supressão de todos os excitantes. - No regime dos doentes, ainda mais do que no dos saudáveis, deverão diminuir-se todos os temperos excitantes, que possam embotar o paladar. Suprimir-se-ão a mostarda, a pimenta, o caril, o café, o chá preto, o tabaco. Este último, além da sua acção tóxica (e da acção cancerígena do alcatrão do tabaco), embota igualmente o paladar.  

Suprimir a mostarda, a pimenta e o caril dos tachos parece-me indesejável; suprimir o chá preto e o tabaco enquanto temperos parece-me surpreendente. 

O livro menciona ainda abundantes receitas de sopas, de legumes, de molhos, ou de doces - todos com açúcar. Não há receituário de peixe ou de carne, mas desta espécie de bíblia suíça constam as delícias benfazejas das batatas fritas, das batatas à lionesa (com manteiga, azeite e óleo) ou das batatas com natas. 

Maximilian Oskar Bircher-Benner morreu em 1939, com 71 anos. Pode dizer-se que morreu idoso. Terá vivido feliz?

JdB

07 março 2021

III Domingo do Tempo da Quaresma

EVANGELHO - Jo 2, 13-25

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Estava próxima a Páscoa dos judeus
e Jesus subiu a Jerusalém.
Encontrou no templo
os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas
e os cambistas sentados às bancas.
Fez então um chicote de cordas
e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois;
deitou por terra o dinheiro dos cambistas
e derrubou-lhes as mesas;
e disse aos que vendiam pombas:
«Tirai tudo isto daqui;
não façais da casa de meu Pai casa de comércio».
Os discípulos recordaram-se do que estava escrito:
«Devora-me o zelo pela tua casa».
Então os judeus tomaram a palavra e perguntaram-Lhe:
«Que sinal nos dás de que podes proceder deste modo?»
Jesus respondeu-lhes:
«Destruí este templo e em três dias o levantarei».
Disseram os judeus:
«Foram precisos quarenta e seis anos para se construir este templo
e Tu vais levantá-lo em três dias?»
Jesus, porém, falava do templo do seu corpo.
Por isso, quando Ele ressuscitou dos mortos,
os discípulos lembraram-se do que tinha dito
e acreditaram na Escritura e nas palavras que Jesus dissera.
Enquanto Jesus permaneceu em Jerusalém pela festa da Páscoa,
muitos, ao verem os milagres que fazia,
acreditaram no seu nome.
Mas Jesus não se fiava deles, porque os conhecia a todos
e não precisava de que Lhe dessem informações sobre ninguém:
Ele bem sabia o que há no homem.

04 março 2021

Duas Últimas

 

Sim, eu sei que já postei esta música, com esta interpretação há pouco tempo. Mas o videoclip é diferente: são 4'30" de uma interpretação fantástica: sensível, comovente, poderosa, para ouvir vezes sem conta alto, sem tirar os olhos do ecrã. Não falamos de música de fundo. Cito um comentário a esta interpretação: how to win an oscar in 5 minutes presented to you by Anne Hathaway.

JdB

03 março 2021

Vai um gin do Peter’s ?

 PALACETES DE LISBOA – À PORTA DO BAIRRO ALTO 

Nesta cidade linda que é Lisboa, alguma arquitectura histórica subsiste, contribuindo para o charme imenso da capital portuguesa. Como, felizmente, ainda há bastantes exemplares, alguns dos menos conhecidos seguem repartidos por mais de um gin. 

Um restauro emblemático, terminado em 2020, permitiu recuperar o antigo palácio dos Condes de Tomar, que já tinha sido o palácio Brito Freire (BF) e até de proprietários antanhos, remontando ao século XVI. Situado em frente à fachada poente da Igreja de S.Roque, corresponde ao nº 3 da lendária rua de S.Pedro de Alcântara. 

No tempo de BF, o palacete tinha adquirido um portentoso conjunto de azulejos seiscentistas, em azul e amarelo. Mas os enormes estragos causados pelo terramoto de 1755, reduziram-no a um vaivém de ocupantes nos pisos superiores e de lojas variadas no piso térreo. Só em 1845, um negociante bem sucedido, Joaquim Pereira de Sousa, resolveu comprá-lo e lançar-se em obras de recuperação e embelezamento expressivas. Adjudicou-as ao estucador Manuel Afonso Rodrigues Pita, conhecido por intervenções de monta noutros palácios de Lisboa, como o dos Burnay, na Junqueira, o dos Marqueses de Viana, no Rato, o dos Costa Lobo no Campo dos Mártires da Pátria, ou o de Eugénio d’Almeida, em São Sebastião da Pedreira. 

As paredes e os tectos foram revestidos com medalhões e outros ornamentos, na entrada houve estátuas de grande porte, a escadaria marmoreada era iluminada pela clarabóia superior, as salas beneficiavam de janelas amplas e nos compartimentos  interiores havia janelas falsas revestidas por vitrais multicolores, hoje iluminados por dentro, num conjunto aparatoso. Quando tudo terminou, já o novo dono se aproximava dos 80 anos, pelo que pouco aproveitou da faustosa residência. 






Tectos com frescos e decorações em estuque; e medalhões ao longo das paredes da escadaria e de algumas salas. 

Seguiu-se o rodopio de herdeiros, até chegar a ser habitado por um filho do Ministro Costa Cabral, casado com uma filha dos Condes de Tomar. Vem daí a associação do título ao palacete. No início do século XX, voltam as confusões entre herdeiros e um novo inquilino – o Royal British Club – fica por lá, até 1966. Entretanto, o estado de conservação torna-se preocupante. Em 1969, chegou a cair uma chaminé e partes do telhado. É o ano em que a CML o compra, para aí instalar a Hemeroteca Municipal de Lisboa, a partir de 1973. Provisoriamente, resolve cobrir parte do telhado com uma placa de zinco, que se foi eternizando.  

Nos anos noventa, a Santa Casa compra o edifício à Câmara, enquanto a degradação continua imparável até à saída da Hemeroteca, em 2013. Só então, a Misericórdia inicia obras profundas e cede o espaço aos Jesuítas, que lhe dão um cunho próprio, para ali instalar o «Espaço Cultural Brotéria». A intenção foi tomar a traça original do passado como moldura e sustentáculo de propostas inovadoras vindas de uma contemporaneidade sedenta de novos horizontes: «A casa é linda de uma perspectiva histórica, é de um tempo que não é o nosso. Mas a Brotéria não é do passado, é um projecto antigo que vive do presente. Por isso, toda esta carga histórica deslumbrante tem de ser actualizada com outras expressões e linguagens. (…) Tem de haver sempre uma relação entre ter a responsabilidade de manter o que é herdado e entre o que se vai fazer daqui para a frente» – explica o Pe. Francisco Mota, SJ.  

A arte foi escolhida para elo de ligação entre o contributo insubstituível de gerações distantes. Por isso, convidaram artistas contemporâneos e coleccionadores privados a exporem peças de arte moderna: «Normalmente peças destas estão em museus, mas há uma barreira moral entre a obra e o espectador. Aqui não, as peças fundem-se com o espaço, estão à vista de todos e por isso é que conseguimos ter um palácio do século XVI com obras do século XXI (…). (Queríamos) ser o espaço onde em Lisboa a fé cristã se encontre com as culturas urbanas contemporâneas (… numa) atitude de escuta perante a arte e os artistas (…), (ser) uma voz católica num mundo plural, tendo em especial atenção o mundo não-católico, numa óptica de diálogo e de cooperação para o bem comum». À entrada ficou a escultura “Seda”, de Rui Chafes. 

Obra de Rui Chafes, à entrada.

O diálogo entre o antigo e o vanguardismo percorre todo o edifício. Ao arquivo da Brotéria somaram-se as pinturas de Jorge Queiroz expostas ao longo de várias salas, a par de fotografias de Rui Calçada Bastos e de João Penalva ou instalações da dupla Dias & Riedweg. Todo o mobiliário de uso corrente é confortável, de linhas simples, com design do estúdio do Porto ‘Non-verbal Club’, enquanto os móveis são da autoria da dupla Pedrita. As cadeiras assumem as cores fortes da azulejaria antiga, em amarelo e azul, os pufes são bordeaux e ocre, as mesas pequenas são brancas, desmontáveis e com estruturas em ferro, enquanto as grandes estão na cor da madeira clara.

Zona das coleções e arquivos da Brotéria.

Sala dos couros

Sala de conferências com tecto original bem iluminado por focos indirectos.

Assim se chegou a 23 de Janeiro de 2020, data de inauguração da nova sede da revista centenária Brotéria, num palacete desejoso de acolher os variadíssimos frequentadores do Bairro Alto e demais transeuntes de Lisboa. Apostava-se numa acção de proximidade com a rua, para chegar a novos públicos. 

Um chamariz adicional foi o restaurante de comida saudável e bem servida, a aproveitar a esplanada em redor de uma pequena laranjeira, com uma fonte ao fundo. Garantiu logo a afluência de curiosos, primeiro e entusiastas, depois. 

A esplanada.

As salas de leitura revestidas a estuques e madeiras recuperadas davam gosto ser visitadas e usadas, seguindo a pluralidade de gentes acolhida no recém-inaugurado polo cultural. Alguns Jesuítas mais novos costumavam passear-se entre os muitos visitantes, no papel de anfitriões simpáticos de uma festa de portas abertas, a falar com uns e outros, a revelar mais recantos simpáticos da casa ou a explicar a história aventurosa da casa ou da Companhia ou da Brotéria. Enfim, um balão de oxigénio em Lisboa, até vir o confinamento e o país fechar, logo na Sexta-feira 13 de Março de 2020. Lembram-se?... 

Com imaginação, a Brotéria (https://www.broteria.org/programacao/) tem continuado a alimentar uma agenda cultural assente em plataformas digitais, que não têm segredos nem anti-corpos para os millennials nem para a esmagadora maioria de lisboetas & vizinhos da cidade.


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

02 março 2021

Do preto e branco

 


Num certo sentido, ainda não se inventou nada mais bonito do que a fotografia a preto e branco. Em bom rigor, o título da música Alone Together teria de ser ilustrado por uma fotografia a preto e branco: e a fotografia de Chet Baker - trompete descaído, uma mão firme no microfone, um olhar sobre uma audiência que, felizmente, não se vê - ilustra na perfeição uma certa nostalgia que perpassa da música.

A fotografia a preto e branco é intemporal; a fotografia a cores é moderna. Nesta dicotomia talvez esteja a explicação para uma certeza: há coisas que ficam, há coisas que existem. Daqui a 100 anos ouvir-se-á música clássica, ou a música que existiu até meados dos anos 80; daqui a 100 anos o preto e branco será visto como uma preciosidade; as cores servirão para revelar a existência das coisas, não a alma das coisas. É um registo, não é a essência. 

Ouvir Chet Baker ou, acima de tudo, ouvir Alone Together, é ver a vida a preto e branco, é chegar ao osso de tudo. O resto é uma cor puxada por via de uma aplicação informática.

JdB     






01 março 2021

Textos dos dias que correm *

Para que servem os sentimentos?

Para que servem os sentimentos? Poder-se-ia argumentar que as emoções sem sentimentos seriam mais do que suficientes para a regulação da vida e para a promoção da sobrevivência. Porém, não é esse o caso. Na orquestração da sobrevivência é extremamente valioso ter sentimentos. As emoções são úteis em si mesmas, mas é o processo de sentir que alerta o organismo para o problema que a emoção começou a resolver. O processo simples de sentir começa por dar ao organismo o incentivo para se ocupar dos resultados da emoção (o sofrimento começa pelos sentimentos, embora seja realçado pelo conhecer, e o mesmo se pode dizer sobre a alegria). O sentir constitui, também, pedra angular para a etapa seguinte - o sentimento de conhecer que sentimos. Por sua vez, o conhecer é pedra angular para o processo de planeamento de respostas específicas e não estereotipadas que podem, quer complementar uma emoção, quer garantir que os ganhos imediatos obtidos pela emoção possam ser mantidos ao longo do tempo. Por outras palavras «sentir» os sentimentos prolonga o alcance da emoção, ao facilitar o planeamento de formas de respostas adaptativas, originais e feitas à medida da situação.

António Rosa Damásio

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* retirado daqui


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