30 novembro 2021

O Capacho *

Entrei em casa de Josephine pela primeira vez já no final de Outubro. Gatteville le Phare estava quase deserta, açoitada por um vento norte, húmido, forte e constante, oriundo da escuridão do Canal da Mancha. No céu, tapado com um manto espesso de nuvens baixas e negras que pressagiava chuva, não se via uma estrela, Do mar, uma negritude persistente, vencida esparsamente pelo ciclo ritmado e luminoso do farol local. Perdi-me numa deambulação desorientada pela vila deserta até descortinar o meu destino. À porta, dois vasos grandes com flores locais, despidas na sua nudez outonal. Por cima, um candeeiro baloiçando desenfreado, espalhando uma luz errática pelo alpendre. Tudo parecia triste e lúgubre à excepção de um tapete grande, cor-de-rosa, em formato de meia lua, onde se tinham desenhado rosas num tom desmaiado mas bonito. Acanhei-me de limpar os pés ao único elemento que derramava um pouco de alegria naquela tristeza nocturna.

(Antoine LeBon, Um Outono no fim do mundo, 1958, Edições Largo da Boa-Hora)     

***

Um capacho será apenas um capacho? Num certo sentido, o da procura individual do equilíbrio das formas e das cores que condiciona as opções e revela escolhas, nada dirá mais sobre o mistério de uma casa onde se penetra pela primeira vez do que o capacho à entrada. Noutra perspectiva, a que é objecto desta reflexão, o capacho tem uma dimensão figurativa que congrega mitos à escala global, como se fossemos todos iguais, independentemente de latitudes, geografias humanas, divindades adoradas.

A definição encontrada nos dicionários é manifestamente curta, reduzindo o artigo em apreço ao utilitarismo das mercadorias vulgares: tapete de esparto a que se limpa o calçado. Numa tentativa de redenção da secura linguística, o dicionário ainda nos proporciona um sentido figurado para a palavra – pessoa servil. Não obstante, a conotação excessivamente negativa destas definições remete o artigo para um estatuto que o impede, algum dia, de alcandorar-se a objecto de estudo e reflexão.

Há uma limitação intelectual – talvez seja correcto dizer-se sensorial – na redução do capacho à sua funcionalidade mais estrita. Na soleira de uma porta o capacho é mais do que um objecto, devendo ser visto como a representação material de uma fronteira que liga, numa primeira fase, o exterior ao interior e, numa fase posterior, a sua inversa.

A limpeza dos sapatos num capacho é mais do que o esfregar intenso, ritmado e em sentidos opostos de uma sola numa superfície rugosa, com o objectivo de remover sujidade indesejável. Este acto, valorizado nos dias de hoje por quem procura apenas uma visão asséptica da vida, tem uma conotação  profunda e que nos remete para dimensões mais vastas do nosso colectivo. Anne Deschamps, uma francesa dos finais do séc. XIX, esposa de um missionário escocês no oriente longínquo, escreveria a um dos seus irmãos:

(...) todos limpam os sapatos num tapete à entrada, ainda que depois se descalcem para entrar. John explicou-me o simbolismo: “entra-se num lar e deixamos o que é exterior no exterior. Entra-se puro, sem influências externas que prejudiquem a harmonia portas adentro”.

Muitos exemplos poderiam ser dados para justificar este desejo de promover o capacho, artigo tão profusamente maltratado, a um estatuto mais condigno com a sua verdadeira raison d’être. A natureza forçosamente curta deste pequeno texto não o permite, no entanto. Não podemos, apesar das limitações de espaço, deixar de referir o significado do capacho no movimento de saída, isto é, do interior doméstico para o exterior mundano. Culturas há – e referimos novamente Anne Deschamps – que olham este movimento de forma diversa.

À saída os habitantes locais contornam o capacho, não porque este esteja sujo, mas porque está repleto de tudo o que para eles significa desequilíbrio da Terra, dos elementos, da sua ligação ao divino – e que pode trazer infortúnios indomáveis.

Deixei a citação da Bíblia – o livro dos livros – para o fim, porque é revelador de um outro ponto de vista. Repare-se na cultura substancialmente diferente da que Anne Deschamps encontrou no oriente, onde o seu marido revelava Jesus aos pagãos:

Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: nem pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto; que fossem calçados com sandálias, e não levassem duas túnicas. E disse-lhes também: «Em qualquer casa em que entrardes ficai nela até partirdes dali. E se não fordes recebidos numa localidade, se os habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés como testemunho contra eles». (Marcos 6, 8-11).

Ver um capacho é ver um símbolo, o espaço medial entre uma casa, no que isso tem de espaço de protecção, e o mundo que a rodeia, ameaçador e violento. Tal como a letra que está no meio de uma palavra, o capacho está no centro de um mundo global que se divide em duas partes distintas e desiguais, porventura antagónicas.

O capacho não é um artigo, mas uma alegoria.

(Jorge Antunes, in Devaneios de uma 2ª feira à tarde, Edições Campos Velhos, 2012).

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* Publicado originalmente a 13 de Novembro de 2012

29 novembro 2021

Músicas e poemas dos dias que correm

 


Diz o Meu Nome

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem
                                  [os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome

Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'

28 novembro 2021

I Domingo do Advento

EVANGELHO – Lc 21,25-28.34-36

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas
e, na terra, angústia entre as nações,
aterradas com o rugido e a agitação do mar.
Os homens morrerão de pavor,
na expectativa do que vai suceder ao universo,
pois as forças celestes serão abaladas.
Então, hão-de ver o Filho do homem vir numa nuvem,
com grande poder e glória.
Quando estas coisas começarem a acontecer,
erguei-vos e levantai a cabeça,
porque a vossa libertação está próxima.
Tende cuidado convosco,
não suceda que os vossos corações se tornem pesados
pela intemperança, a embriaguês e as preocupações da vida,
e esse dia não vos surpreenda subitamente como uma armadilha,
pois ele atingirá todos os que habitam a face da terra.
Portanto, vigiai e orai em todo o tempo,
para que possais livrar-vos de tudo o que vai acontecer
e comparecer diante do Filho do homem».

26 novembro 2021

Textos dos dias que correm

O Poder do Acaso

O acaso é um poder maligno, no qual se deve confiar o menos possível. De todos os doadores, ele é o único que, ao dar, mostra ao mesmo tempo e com clareza que não temos direito nenhum aos seus bens, os quais devemos agradecer não ao nosso mérito, mas tão-só à sua bondade e graça, que nos permitem até nutrir a esperança alegre de receber, no futuro e com humildade, muitos outros bens imerecidos. Eis o acaso: mestre da arte régia de tornar claro o quanto, em oposição ao seu favor e à sua graça, todo o mérito é impotente e sem valor.

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'

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O Livre-Arbítrio não Existe

Contemplando uma cascata, acreditamos ver nas inúmeras ondulações, serpenteares, quebras de ondas, liberdade da vontade e capricho; mas tudo é necessidade, cada movimento pode ser calculado matemáticamente. O mesmo acontece com as acções humanas; poder-se-ia calcular antecipadamente cada acção, caso se fosse omnisciente, e, da mesma maneira, cada progresso do conhecimento, cada erro, cada maldade. O homem, agindo ele próprio, tem a ilusão, é verdade, do livre-arbítrio; se por um instante a roda do mundo parasse e houvesse uma inteligência calculadora omnisciente para aproveitar essa pausa, ela poderia continuar a calcular o futuro de cada ser até aos tempos mais distantes e marcar cada rasto por onde essa roda a partir de então passaria. A ilusão sobre si mesmo do homem actuante, a convicção do seu livre-arbítrio, pertence igualmente a esse mecanismo, que é objecto de cálculo.

Friedrich Nietzsche, in 'Humano, Demasiado Humano'

24 novembro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

 COVER MUSICAL MELHOR QUE O ORIGINAL DOS THE ELECTRICS

A misturada desta gravação, interpretada por um indiano numa das Igrejas monumentais da Viena imperial, lembra aquelas anedotas em que os maravilhosos protagonistas do Muppet Show eram peritos, naturalmente em versão de comédia. Era o caso das exibições do cozinheiro sueco, que apresentava o seu programa culinário num inglês tão explicado quanto ininteligível, enquanto fazia voar todo o arsenal da cozinha a um ritmo alucinante, onde não faltava convicção nem entusiasmo.  

Neste caso, a mistura é só imprevista, com um indiano, que calha ser católico originário de terras asiáticas e, mais raro ainda por aquelas bandas, é sacerdote. Talvez o apelido de ressonância portuguesa explique este facto – Pe. Sandesh Manuel. A somar a estas invulgaridades, o Pe. Manuel tem uma voz linda, que costuma enriquecer com o dedilhado poético da sua viola e um violino amigo. Nesta gravação, canta uma balada irlandesa de letra semi-natalícia, conhecida por «A Bênção»: 


«MAY YOUR LIFE IN THIS WORLD BE A HAPPY ONE, 

May the sun be warm and may the skies be blue,
And may each storm that comes your way
Clear the air for a brighter day,
May the saints and Saviour watch over you. 

As you make your way through this old world of ours,
As you see the beauty of the morning dew,
As you smell the summer flowers, as you pass away the Hours,
May the saints and Saviour watch over you.


REFRÃO

May your life in this world be a happy one,
May the sun be warm and may the skies be blue, (…) 

As you spend your time with your friends and your Family,
As you feel the warmth and love they have for you,
As you see the wars and the hate that others radiate,
May the saints and Saviour watch over you. 

REFRÃO

May your life in this world be a happy one, 
May the sun be warm and may the skies be blue, (…)» 

Segue também o original dos The Electrics, lançado em 1997, para quem goste de privilegiar os autores desta Irish Blessing ou, simplesmente, queira comparar as duas versões:  

Aproveitando a maré das boas vozes e da excelente música irlandesa, partilho uma interpretação festiva do «Heartland» pelo grupo Celtic Thunder:

Na contagem decrescente para o Natal, desejar a vida feliz na toada aconchegante e doce da interpretação do sacerdote indiano, ganha um eco especial e pleno sentido, remetendo para a noite mais estrelada da história da humanidade, repleta de contrastes misteriosos. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

23 novembro 2021

Da misericórdia, ou das noites de cada um de nós *

 Theodor Adorno afirmou: to write poetry after Auschwitz is barbaric. Cruzei-me com esta frase anteontem. Opto pela interpretação simples, ainda que potencialmente incorrecta: a noite de Auschwitz matou a possibilidade do belo. O pensamento veio também a propósito de outras lucubrações derivadas de dizer coisas, ouvir outras, ler frases, apanhar fragmentos de fragmentos, fazer dos fins de tarde quentes em esplanadas sossegadas momentos de inspiração e espanto. 

Cada um de nós tem o seu rol de noites de Auschwitz, ainda que elevadas à potência comezinha das vidas mais ou menos fagueiras. São os dramas, os desgostos, as perdas, as traições; são os olhos postos no chão com que enfrentamos os nossos mais próximos a quem, com vergonha inútil, imaginamos a palavra desilusão inscrita nas pálpebras. Transpor a frase de Adorno para a nossa ruela terrena seria afirmar que nenhuma felicidade (nos) é completa - talvez mesmo nem permitida, nalguns casos - depois do renque de sofrimentos acima. Como se a existência degenerasse então numa espécie de loiça de refugo, vedada que nos está a partilha de refeições em pratos de primeiríssima qualidade. 

A vida tem de ser a procura da paz, mais do que da felicidade. Já aqui o disse, citando Hans Kung. À noite de Auschwitz temos de contrapor os olhos postos no Céu, onde está a resposta de tudo para tudo, a luz perene que ilumina a alma de quem sofre e de quem cuida. Antes de olharmos para o lado temos de olhar para cima, dar à relação horizontal uma dimensão vertical. Só o Amor nos salva - o amor pelos que nos estão mais próximos, o amor que é verdade, transparência, partilha, pedido de ajuda, mãos abertas que significam impotência e ansiedade. Ao olhar que pede damos uma palavra que enxuga lágrimas, não um cilício que aperta ilhargas.

Erbarme dich, significa, em alemão, tem misericórdia. Ouvir a beleza mais triste pode ser um acto redentor, um módico de iluminação na noite de Auschwitz, a generosidade divina que nos converte, nos faz perceber que é mais importante deixar traços do que provas. Só o Amor nos salva - e a misericórdia, que é compaixão.

JdB 


* publicado originalmente a 3 de Outubro de 2014

21 novembro 2021

Solenidade de Cristo, Rei do Universo

EVANGELHO - Jo 18,33b-37

Naquele tempo,
disse Pilatos a Jesus:
«Tu és o Rei dos judeus?» Jesus respondeu-lhe:

«É por ti que o dizes,
ou foram outros que to disseram de Mim?» Disseram-Lhe Pilatos:
«Porventura eu sou judeu?
O teu povo e os sumos sacerdotes é que Te entregaram a mim. Que fizeste?»
Jesus respondeu:
«O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam
para que Eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui».
Disse-Lhe Pilatos:
«Então, Tu és Rei?» Jesus respondeu-lhe:
«É como dizes: sou Rei.
Para isso nasci e vim ao mundo,
a fim de dar testemunho da verdade.
Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».

19 novembro 2021

Dos acasos *

“Não há, portanto, razão nenhuma para censurar aos romances o seu fascínio pelos misteriosos cruzamentos do acaso... mas há boas razões para censurar o homem por ser cego a esses acasos na sua vida quotidiana e assim privar a vida da sua dimensão de beleza”.

(Milan Kundera in A Insustentável Leveza do Ser)

***

Em 1754, o inglês Horace Walpole escrevia The Three Princes of Serendip, uma história baseada num conto infantil persa. Três príncipes do Ceilão fazem constantemente descobertas inesperadas cujos resultados, na realidade, não procuravam. Com isso encontravam acidentalmente a solução para dilemas impensados. Nasceu aqui a palavra serendipidade (do inglês serendipity) que o dicionário define como característica de quem faz boas descobertas por acaso ou atrai o acontecimento de coisas favoráveis

Pego nas Confissões. Em VIII, XII, 28, Santo Agostinho fala da sua conversão. Cito: Dizia isto e chorava com a contrição amaríssima do meu coração. E eis que ouço uma voz vinda da casa ao lado, como o canto de alguém, não sei se menino ou menina, que dizia e repetia muitas vezes: “Toma, lê, toma, lê.” Agostinho pega no códice do Apóstolo e lê o que os seus olhos viram em primeiro lugar: Nem em comezainas e bebedeiras, nem em libertinagem e dissoluções... (Romanos, 13:13-14). A vida do bispo de Hipona e doutor da Igreja estava traçada. 

Que relação temos nós com os acasos da vida? Que encantos lhes descortinamos ou, mais arrojadamente, como os enquadramos nós na nossa forma de viver? Tudo o que nos acontece afortunadamente é sorte e cálculo de probabilidades? Ou há momentos na nossa vida em que nos apercebemos de uma profusão maior de acasos favoráveis - a que Jung chamava sincronicidades? 

A minha resposta é a minha convicção. Atribui-se a Einstein a frase: a coincidência é a forma que Deus tem de permanecer anónimo. Olho para trás, para a publicação do meu único livro (em co-autoria com a Rita Jonet). Tudo – mas rigorosamente tudo – envolvido na publicação do Deus pregou-me uma partida é uma sucessão tremenda de acasos que se conjugaram para que o livro visse a luz do dia e tocasse alguma pessoas. Sorte? Cito ainda Einstein: Deus não joga aos dados

Gosto de encontrar acasos na minha vida: saber que foi determinante para a minha caminhada ter estado em tal sítio a tal hora; perceber que de um encontro fortuito se fazem amizades estruturantes; encontrar um livro que se leu dez anos antes e cuja importância decisiva para vencer um desgosto profundo só agora se descortina; cruzar-me com uma frase e perceber que ela limpa a minha mente de dúvidas ou erros; encontrar relações acidentais entre datas, locais, pessoas; ouvir uma música inesperada num momento de turbulência e realizar que ela me leva para uma memória que é um refúgio. 

Sou um homem feliz porque tenho muitos acasos, ou a felicidade advém de os conseguir encontrar na minha vida? 

Os que faziam do latim a sua língua chamavam-lhe apertio libri – abertura do livro.  Os antigos faziam-no com os textos de Homero ou de Virgílio – textos pagãos: abriam ao acaso e liam uma frase para discorrerem qualquer coisa. A expressão sortilégio – escolha de sortes – vem daí. Santo Agostinho fez a sortes sanctorum, porque procurou o seu caminho num texto bíblico. A nós, que não somos santos nem muito antigos nem escrevemos em latim, resta-nos olhar para a vida e para a beleza dos acasos favoráveis. Talvez, porque não, pensar no riso de Deus por trás do seu aparente anonimato... 


JdB

* publicado originalmente em 30 de Abril de 2014

17 novembro 2021

Poemas dos dias que correm

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim. 

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga

15 novembro 2021

Singularidades de uma rapariga loira

 


Há pouco mais de 13 anos, a passar dois meses no Zimbabwe, fui a uma festa em Harare. Cantava uma senhora local (hei-de lembrar-me do nome para trazê-la de novo ao estabelecimento) tendo-se-lhe juntado alguns locais para dançar. De repente, e seguramente impulsionada pelo clima de um continente onde o pecado é apenas uma palavra e os corpos têm uma sensualidade entusiasmante, uma holandesa atirou-se ao palco para dançar também. Não falo do contraste claro - escuro, de pessoas de cor com uma loira de permeio; falo do contraste entre o ritmo, a sexualidade quase explícita, o casamento perfeito e dengoso entre música e movimento dos africanos, e o esforço saudável e meritório de uma rapariga frísia a tentar o seu melhor.

Sway é um cha-cha-cha, parece-me. Nem Dean Martin nem Colin Firth - um actor que suscita suspiros por aí - são latino-americanos. Dean Martin, no entanto, canta bem tudo - de uma toada de cowboys a uma música italiana - sobretudo com aquela voz sensual, já meio alcoólica, com falhas que suscitariam olés!, fosse esse o caso. Já Colin Firth (de quem eu me lembro dizer bonita Aurélia, a uma Lúcia Moniz vestida de serviçal natalícia) tem a singularidade de uma rapariga loira no meio de zimbabueanos.

Oiçam, acima de tudo. Também podem ver, mas é menos importante.

JdB

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retirei a idea para este texto aqui.
 

Textos dos dias que correm

Snoopy e a felicidade

Ele é alegre, contente, seguramente egocêntrico, mas pronto a irradiar a sua energia, a sua positividade para o que quer que seja que o rodeie, inclusive – mas apenas em ocasiões únicas como o Natal – para o odiado e ameaçador gato dos vizinhos. Ela, pelo contrário, despeitada, ácida e petulante, é totalmente voltada para si mesma, inclusive quando do seu quiosque de ajuda psiquiátrica prodigaliza presumidos conselhos, unicamente úteis para passar cinco cêntimos para o seu bolso.

Snoopy e Lucy, ou a fantasia e o realismo, a cigarra e a formiga, a imaginação desenfreada e o utilitarismo sarcástico e desconfiado. Snoopy e Lucy estão nos antípodas no mundo de Schulz; é por isso que, quando se encontram, o que acontece com frequência, geram uma descarga de tensão que, no entanto, ilumina ainda mais o carácter dos dois personagens, que, no bem lá no fundo, precisam um do outro e talvez até se queiram bem.

Se é verdade, como escrevia o grande poeta Thomas Stearns Eliot, que o género humano não suporta demasiada realidade, Lucy, por seu lado, não suporta demasiada fantasia, e, neste caso, a excessiva imaginação de Snoopy, em relação ao qual comete o erro típico de quem inveja a imaginação: não compreende que esta faculdade é o melhor caminho para a felicidade, e não para uma alienação impotente e narcisista.

É verdade que Lucy também imagina: imagina uma história de amor impossível com o geniozinho do piano Schroeder, mas também neste caso a sua fantasia não é desenfreada, não executa um exercício útil de identificação com as coisas a realizar, mas tenta forçar a realidade, percorre uma estrada que é irremediavelmente sem saída. E quando pensa o futuro junto da criança de quem está enamorada, fotografa sempre momentos tão improváveis quanto concretos, que procura orquestrar desde logo como potencial chefe de família. Apesar de ostentar segurança nas palavras, não tem confiança nestes castelos de cartas, de tal maneira que, enquanto fala a Schroeder, lhe vira as costas. Ainda por cima inveja a sua capacidade artística, sente-a como uma rival imbatível, tanto mais invencível quanto mais ela está consciente de nem de longe a poder igualar com qualquer outro recurso ou sentimento.

Lucy está desabituada da imaginação porque não sabe olhar para fora de si. A imaginação, pelo contrário, é generosa, extrovertida e altruísta, não se detém e não se abate, encontra sempre uma possibilidade; ela, ao invés, como todos os realistas estéreis, é incapaz de escapar ao seu eu, de partilhar os desejos, é incapaz sobretudo de ver a pureza e a nobreza dos desejos dos outros. Por isso inveja e destrói com o sarcasmo qualquer anseio, qualquer projeto ideal, qualquer demonstração de alegria que não conhece nem é capaz de compreender. No palco do teatro do Charlie Brown quer Lucy quer Snoopy aspiram à felicidade. O mesmo sucede com todos os outros personagens, mas a procura deles é contínua, obsessiva. Vivem-na de maneira radical e pessoalíssima. A busca da felicidade de Lucy está condenada a uma estéril frustração e vai acabar no beco sem saída da insatisfação de quem, não se dando conta – a não ser, talvez, inconscientemente – dos seus limites, põe-se a acusar o mundo e não tenta sequer esboçar uma mínima estratégia de autocrítica.

Quando aumenta o rendimento, aumentam também as aspirações em relação aos bens que queremos consumir, e isto induz os consumidores a requerer prazeres contínuos e mais intensos para a manter o seu nível de satisfação anterior. Daqui emergem frustrações e insatisfações contínuas que se acompanham inevitavelmente com a inveja dos bens alheios

A busca de Snoopy, pelo contrário, é totalmente outra, precisamente porque não é uma busca nem um projeto, mas uma absoluta adesão ao instinto, numa vitalidade inebriante e contagiosa. Que brilha continuamente em novas roupagens, porque está cabalmente voltada para o exterior, para uma gratuidade absoluta, e porque imita, e na imitação vive a riqueza, a variedade e as cores do mundo. Uma alegria quase incontrolável que Schulz descreve muitíssimo bem, fazendo do seu bigle um dançador perfeito: o focinho para cima, as orelhas ao alto, poucos traços debaixo das patas para encenar uma contínua levitação da terra. E o belo desta dança da felicidade é que Snoopy procura envolver quem quer que esteja junto dele. Afirma-o programaticamente: «Às vezes gosto tanto da vida que não o sei exprimir! Sinto que gostaria de abraçar a primeira pessoa que encontro e dançar alegremente com ela, pela estrada». Infelizmente, a primeira pessoa com que se depara é uma Lucy amuadíssima, em relação à qual Snoopy sente o dever de procurar de imediato uma alternativa. Certamente não à expressão da alegria, mas à pessoa a envolver.

Mais uma vez Schulz oferece-nos aqui um ensinamento preciso, que antecipa em décadas algumas conclusões de filósofos e sobretudo economistas, que, ao estudar a felicidade, procuraram estabelecer variantes mesuráveis ou verificáveis no âmbito social, considerando a felicidade como um bem relacional. Uma pesquisa que se segue à tomada de consciência do fracasso de todas as tentativas de a ligar ao egoísmo da pessoa singular e à satisfação das suas necessidades, a começar pelo dinheiro.

Esta é a tese de Luigino Bruni, um dos mais considerados economistas italianos que se ocupam da «felicidade pública»: quando aumenta o rendimento, aumentam também as aspirações em relação aos bens que queremos consumir, e isto induz os consumidores a requerer prazeres contínuos e mais intensos para a manter o seu nível de satisfação anterior. Daqui emergem frustrações e insatisfações contínuas que se acompanham inevitavelmente com a inveja dos bens alheios. É preciso então elaborar, mas sobretudo viver, uma ideia diferente de felicidade, baseada em algo de mais profundo e duradouro, mas que parta de um contacto com o outro, um prosseguimento daquele abraço que Snoopy quer oferecer a todo o mundo, precisamente como o «beijo» do “Hino à Alegria” de Schiller que o coro canta com acentuações quase místicas na “Nona Sinfonia” de Beethoven.

Uma felicidade que se baseia na companhia, na partilha, em dar algo aos outros. Reiteramos: não é uma utopia, mas um conceito sufragado por dados empíricos e de investigações de campo.


Saverio Simonelli
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 12.11.2021

14 novembro 2021

XXXIII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mc 13,24-32
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Naqueles dias, depois de uma grande aflição,
o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade;
as estrelas cairão do céu
e as forças que há nos céus serão abaladas.
Então, hão-de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens,
com grande poder e glória.
Ele mandará os Anjos,
para reunir os seus eleitos dos quatro pontos cardeais,
da extremidade da terra à extremidade do céu.
Aprendei a parábola da figueira:
quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas,
sabeis que o Verão está próximo.
Assim também, quando virdes acontecer estas coisas,
sabei que o Filho do homem está perto, está mesmo à porta.
Em verdade vos digo:
Não passará esta geração sem que tudo isto aconteça.
Passará o céu e a terra,
mas as minhas palavras não passarão.
Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém os conhece:
nem os Anjos do Céu, nem o Filho;
só o Pai».

12 novembro 2021

Textos dos dias que correm

No seio de Etty Hillesum

As tristes páginas da história dos campos de concentração do século breve falam apenas superficialmente das trevas siderais de tempos radicalmente obscurecidos pela barbárie. E no entanto, na noite cerrada, a intensa obscuridade é rasgada pela luz mais poderosa das estrelas.

Etty é diminutivo de Ester, que quer dizer “estrela”. É uma estrela cadente que traz uma mensagem de esperança, ao mesmo tempo que encoraja com as suas promessas a manifestação de um desejo: «Tenho de educar o meu desejo e guiá-lo para o seu destino final, com toda a cautela e dignidade de que sou capaz» (“Diário”).

Interroga-se, coloca questões ao seu coração, “pensa” em como pôr de pé esse caule curvado e chagado do coração. Compreende também a necessária eventualidade de «domar o desejo», para se orientar e chegar à fonte da verdade, da autenticidade, mostrando a beleza e a dignidade de cada ser humano, para realizar a missão originária da vida: fazer de si uma obra de arte.

Desta forma, «trabalhar-se a si própria» torna-se empreendimento corajoso e por vezes lacerante, quando se chega à fonte e se bebe da água borbulhante da vida eterna. Aqui, e só aqui, se purifica «o grande ódio que nos envenena a alma».

A alma é “psyché” em grego, mas também borboleta, cujo voo indica a liberdade alcançada no campo de Westerbork: «Lá pude tocar com a mão como cada átomo de ódio que se acrescenta ao mundo o torna ainda mais inóspito».

Por isso Etty não «quer odiar», domina o seu desejo e «encadeia-o» numa fé na humanidade que a Fonte (Deus desenterrado) lhe revela: «Bastaria a existência de um só ser humano digno deste nome para poder crer nos homens e na humanidade» (“Diário”).

E faz verdadeiramente estremecer o coração como conseguiu – esta jovem mulher que nunca pôs os pés numa igreja e raramente numa sinagoga – alcançar os altos cumes da mística de Jesus, da sua humanidade («este é o meu Filho de quem me comprazo, segui a sua humanidade»): o amor pelos inimigos. 


Antonio Staglianò
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins

Publicado pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura em 11.11.2021

10 novembro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

DESCOBRIDOR DA TRISSOMIA 21 PERSEGUIDO NA EUROPA LIVRE DOS ANOS 70 

A vida sob pressão do maior geneticista do século XX – o Prof.Jérôme Lejeune (1926-1994) – dá bem a medida de alguma falta de liberdade nas democracias ocidentais! Claro que numa escala mais benigna do que nas ditaduras, embora também seja descarada e feroz nos temas da moda. É eloquente a resposta do jornalista e escritor inglês George Orwell, quando lhe perguntavam se era o regime soviético o alvo primeiro das denúncias dramáticas plasmadas em “1984”, que publicara em 1948. Não – esclarecia – inspirava-se antes no que via e antevia no rumo da sociedade inglesa! Sim, no país de prática democrática mais antiga e sólida.  

Lejeune, nado e criado em França, sofreu na pele a perseguição mediática e até ameaças de morte nos EUA e no seu país, desde o final dos anos 60. Isto, apesar de já ser considerado a sumidade mundial da genética, com descobertas científicas ímpares sobre os efeitos da bomba atómica no sistema reprodutivo humano, a origem da Trissomia 21 (em 1959), etc. Já era considerado o médico da esperança e admirado pela inteligência, pelo saber imenso, pela dedicação extrema aos doentes e aos pais das crianças com síndrome de Down. Conheciam-se histórias tocantes, como a existência de um segundo microscópio no seu consultório para os pacientes poderem observar com ele a presença de um cromossoma suplementar nos portadores da Trissomia 21, ao nível do par 21º. 

Por junto, o seu testemunho de vida converteu outros médicos, como a investigadora mexicana Pilar Calva, que estagiou com ele, em Paris. Porém, também foi muito atacado e caluniado, mal se atreveu a chamar homicídio ao aborto.

O estalar da animosidade deu-se na conferência que proferiu, após receber o maior prémio de genética norte-americano – o «William Allen Memorial Award» -- em Agosto de 1969, sete anos depois de ter sido galardoado com o prémio Kennedy. Ao declarar que a vida humana começava no concepção, gelou aquela assembleia composta pelos médicos mais eminentes da sua geração, reunidos em S.Francisco. Pretendia alertá-los para o risco de se tornarem cúmplices de uma cultura de morte, empenhada em descartar – entenda-se, matar – os improdutivos. Elitismo mais perverso era difícil. E Lejeune era frontal a apelidá-lo de “racismo cromossomático”. Finda a conferência, não lhe ficaram dúvidas sobre a guerra sem quartel que o esperava, conforme escreveu à mulher. No diário confidenciou, que tinha acabado de perder o Nobel da medicina, controlado por aquela elite hostil. 

Como a trissomia 21 se tornara na bandeira argumentativa do movimento abortista, a defesa dos bebés com síndrome de Down arrastou-o para o epicentro da luta incendiária, que grassava pelo Ocidente rico dos anos 70. 

Acorriam ao seu consultório de Paris doentes de todas as latitudes.

De certo modo, o seu dia-a-dia virou campo de batalha, inclusive em sentido literal. Uma sessão pública onde era orador foi sabotada por desordeiros, que agrediram os participantes com barras de ferro (incluindo pessoas de idade), obrigando a polícia a intervir. Dessa vez, o médico-cientista sofreu hematomas na cara. 

Viveu também momentos únicos do último quartel do século XX, como a coincidência de se ter encontrado, pela primeira vez, com João Paulo II horas antes do atentado de 13 de Maio de 1981. Tinham almoçado juntos e dali regressara a Paris, onde soube da notícia, que o abalou fortemente. Em 1981, fora à Rússia, em missão diplomática do Papa, para persuadir aquela potência nuclear a abster-se de fazer uso do arsenal mortífero. É dele o alerta histórico: «Nós, os cientistas, sabemos que, pela primeira vez, a sobrevivência da humanidade depende da aceitação por parte de todas as nações de preceitos éticos, que transcendam os poderes terrenos». 

Até morrer, em 1994, continuou a somar cargos, que usou como frentes de combate a favor do direito a viver, verdadeiramente igualitário na defesa da igualdade de oportunidades e no reconhecimento da dignidade inviolável de todo o ser humano, a começar pelos mais frágeis. Nem o cancro doloroso, que o fez partir aos 67 anos, abrandaram o seu empenho, encarando os fracassos como sementes de vitória para outros colherem, num outro tempo. A meses de morrer, ainda anuiu ao pedido do Papa para presidir à recém-criada Academia Pontifícia de Medicina.

Deixou escritos antológicos, como a conferência(1) publicada em 1992 sob o título «FISIOLOGIA DA INTELIGÊNCIA». Ali discorre sobre a relação estreita entre o ser humano e o cosmos, explicando quanto das leis que regem o universo estão inscritas na matriz mais profunda da humanidade. Percorre os filósofos helénicos, com Sócrates e Aristóteles, avança para a Idade Média, seguindo-se Galileu, Descartes, Newton, Pascal, Einstein, para comprovar como os grandes cientistas são, acima de tudo, grandes intérpretes dos mistérios insondáveis da natureza, porque encontraram nela ecos do que intuíram dentro de si. Discorre igualmente sobre a condição humana e a importância da complementaridade entre a razão e a afectividade do coração. Fascinante, mesmo para leigos.

Nas Jornadas da Juventude, decorridas em Paris, em 1997 e sagradas como um êxito rotundo, João Paulo II quis fazer um desvio até ao povoado onde repousa a campa de Lejeune, para ali rezar em homenagem pública ao intrépido «servidor da vida». A bravura do cientista-médico – que ousara dar voz aos deficientes e aos impedidos de nascer – foi, recentemente, reconhecida pela Santa Sé como de nível heróico, segundo explica este artigo, generosamente cedido pelo autor:  

«O preço da santidade

No dia 21 de Janeiro, com o decreto de reconhecimento das virtudes heróicas, o Papa Francisco deu um passo decisivo para a canonização do Prof. Jérôme Lejeune, o mais importante geneticista do século XX.

O elemento essencial de um processo de canonização é este reconhecimento de que a pessoa é santa, no sentido mais forte da expressão. Para o averiguar, equipas de especialistas da diocese e da Santa Sé levam a cabo uma investigação histórica muito completa. Se a pessoa tem grandes qualidades, mas não se distinguiu por uma santidade «heróica», como lhe chama a Santa Sé, o processo termina logo. Se a investigação evidencia uma dedicação verdadeiramente extraordinária, a Deus e aos outros, o Papa, apoiado no parecer de várias equipas de consultores, manda publicar o decreto das virtudes heróicas e o processo de canonização segue para a fase final.

Embora Jérôme Lejeune tenha sido um dos cientistas mais brilhantes do século XX e o mais destacado no campo da genética médica, esse aspecto não foi directamente tido em conta na análise das suas virtudes. Por exemplo, a sua inteligência extraordinária não o ajudou e teria sido um obstáculo para concluir positivamente o processo se ele tivesse sido preguiçoso e não a tivesse feito render devidamente. Igualmente, essa capacidade intelectual seria um obstáculo se o tivesse levado ao orgulho.

O processo histórico que analisou as virtudes heróicas de Jérôme Lejeune também não se apoia no facto de ele ter sido duramente perseguido e prejudicado na sua carreira profissional pelos interesses ligados ao aborto. O facto de alguém ser vítima de grandes injustiças não implica santidade e pode até deixar nela algum rancor. Neste caso, ficou demonstrado que os atropelos de que este cientista extraordinário foi vítima não o transformaram numa pessoa amarga ou ressentida.

Depois dos mártires do nazismo e do comunismo, a indústria do aborto foi talvez a maior causa de injustiças e de obstáculos ao progresso da ciência em todo o século XX. Também em Portugal, os abortistas fanáticos conseguiram expulsar dos hospitais do Estado vários médicos que se recusaram a colaborar com o aborto e, noutros países, cientistas de grande categoria foram igualmente perseguidos.

Causar a morte deveria repugnar, por isso muitas pessoas pensam que há qualquer coisa de demoníaco nesta atracção pelo aborto, pela tortura e, mais recentemente, pela eutanásia. Independentemente do papel que o demónio possa ter nesta atracção depravada, não podemos esquecer que o aborto junta o interesse económico dos capitalistas sem escrúpulos com a cultura do sexo promovida pelas correntes políticas decadentes: o resultado é a catástrofe ética a que assistimos nalgumas sociedades ocidentais.

O Papa escolheu o dia 21 de Janeiro para ordenar a publicação do decreto das virtudes heróicas do Prof. Jérôme Lejeune por ser o aniversário da descoberta do mistério da Trissomia 21 (também conhecida como síndrome de Down, ou mongolismo), um dos mais extraordinários êxitos científicos de Lejeune.

Num primeiro momento, as descobertas científicas do Prof. Lejeune geraram entusiasmo por todo o mundo mas, quando se soube que ele rejeitava a morte de crianças e de adultos, o «lobby» abortista entrou em acção. Perseguido pelos Governos de direita e por interesses capitalistas corruptos, ameaçado de morte pelos revolucionários que pretendiam generalizar o aborto, Jérôme Lejeune não cedeu.

No seu caso, a santidade teve um preço muito elevado, mas Lejeune nunca cedeu.

Por contraste, a sua vida deixou um fruto imenso. Tratou milhares de doentes, chegados à sua consulta vindos de todo o mundo. Ficaram para a posteridade as suas descobertas científicas notáveis. Deixou uma inspiração forte a todos aqueles que têm de defrontar os interesses obscuros da cultura da morte. E, melhor que tudo isso (é essa a opinião do Papa Francisco) Lejeune reza intensamente por todos nós junto de Deus.


Jérôme Lejeune, um dos maiores cientistas do século XX.»

José Maria C.S. André – 7.FEV.2021

A UNICEF não hesita em convocar todos para ajudarem a viabilizar a sua missão de protecção aos mais novos: «Assim como ‘é preciso toda uma aldeia para educar uma criança’, como diz o provérbio africano, é preciso toda uma comunidade para proteger crianças, adolescentes, jovens e suas famílias. Uma comunidade que se une para exercer a cidadania, proteger a infância e a juventude, defender e reivindicar direitos é uma comunidade de cuidado.» O alerta do célebre geneticista francês explica por que é crucial para o futuro da humanidade recuar essa linha defensiva até ao limiar menos visível da vida intrauterina. Com poesia e alguma ironia, Antoine de Saint-Exupéry também deixou um alerta certeiro: todas as grandes [e as pequenas] personagens começaram por serem pequenas, mas poucas se recordam disso. De facto, não há outra maneira de chegar a grande, sem passar pelo estádio inicial de semente.

Maria Zarco 

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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 (1) http://www.amislejeune.org/index.php/es/jerome-lejeune-y-su-obra/son-message/conferencias/la-foi-dans-la-science


09 novembro 2021

Da Igreja de Santa Maria, no Marco de Canaveses

 

Sempre tive uma falta de paciência não explicada - mas pouco cristã - para com guias turísticos, salvo em casos especiais. Tenho a sensação que me condicionam o que quero ver, que falam demais e, talvez seja isso o mais importante, que não vou fixar o que me dizem: distraio-me, olho em volta, vou à procura de um pormenor que só a mim interessa, perdendo uma informação que pode ser relevante - ou apenas interessante.

Aconteceu isso há uns meses quando, em viagem por algumas zonas daquela região, decidimos ir visitar a Igreja de Santa Maria, no Marco de Canaveses, da autoria do Arquitecto Siza Vieira. Para entrarmos tivemos de nos dirigir ao acolhimento e a senhora, solícita, ofereceu-se para nos fazer uma visita guiada. Em boa hora aceitámos. A senhora em questão não nos pareceu ter estudos de arquitectura ou de turismo. Pareceu-nos apenas uma funcionário muito interessada, com um misto de informação e adivinhação sobre algumas características da igreja. E uma verdadeira apaixonada por aquele templo.


Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade. Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para O ver, porque Ele devia passar por ali. Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe:
«Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa.»
Ele desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria. Ao verem aquilo, murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um pecador. Zaqueu, de pé, disse ao Senhor:
«Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais.»
Jesus disse-lhe:
«Hoje veio a salvação a esta casa, por este ser também filho de Abraão; pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.»

(Lc 19,1-10)

Porque ponho aqui este trecho da Bíblia. Porque se não fosse a senhora não saberíamos que os bancos da Igreja são feitos de sicómoro. Se não fosse a senhora não saberíamos que há um fio de água que nasce no batistério e que vai terminar nas capelas mortuárias, como um simbolismo do início e fim de uma vida. Ou não saberíamos que a razão de ser da curvatura das paredes se relaciona com a forma de um corpo que alberga uma criança no seu interior - a gravidez de Nossa Senhora .

Será que a senhora sabia tudo? Não faço ideia; talvez não soubesse e isso desse algum encanto à visita, como se houvesse uma suspeita de uma surpresa, de uma opinião não científica, e tudo isso desse um toque humano à visita. Por fim falou-nos de qualquer coisa no tecto (ou no telhado) que seria em número de 5. "São os 5 dedos de Deus..." afirmou. Permiti-me discordar, até porque não me lembro de haver referências aos dedos de Deus na Bíblia - e na célebre obra A Criação do Homem, de Miguel Ângelo, há um dedo relevante., apenas.. Disse-lhe que o cinco talvez fosse uma referências às chagas de Cristo. Olhou para mim com um ar satisfeito. O gozo de ter uma interpretação alternativa (desconhece-se se credível) era superior ao facto de alguém ter discordado dela...

JdB 

08 novembro 2021

Duas Últimas

 Soube da existência de Marília Mendonça pelo facto de ela ter morrido. Por vezes, - triste ironia - os 15 minutos de fama de alguém vêm quando essa pessoa já não pode usufruir dela. Marília era brasileira, tinha 26 anos e ficara conhecida como a “rainha da sofrência”. Morreu num desastre de avião.

Uma das suas toadas mais conhecidas intitulava-se Infiel. Deixo-vos com a letra e com o vídeo.

Isso não é uma disputa E eu não quero te provocar Descobri faz um ano e tô te procurando pra dizer Hoje a farsa vai acabar Hoje não tem hora de ir embora Hoje ele vai ficar No momento deve estar feliz E achando que ganhou Não perdi nada, acabei de me livrar Com certeza ele vai atrás Mas com outra intenção Tá sem casa, sem rumo E você é a única opção E agora será que aguenta A barra sozinha Se sabia de tudo Se vira a culpa não é minha O seu prêmio que não vale nada Estou te entregando Pus as malas lá fora e ele ainda saiu chorando Essa competição de amor só serviu pra me machucar Tá na sua mão Você agora vai cuidar de um traidor Me faça esse favor Iêê Infiel Eu quero ver você morar num motel Estou te expulsando do meu coração Assuma as consequências dessa traição Iêê Infiel Agora ela vai fazer o meu papel Daqui um tempo você vai se acostumar E aí vai ser a ela que vai enganar Você não vai mudar....

07 novembro 2021

XXXII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mc 12,38-44

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus ensinava a multidão, dizendo:
«Acautelai-vos dos escribas,
que gostam de exibir longas vestes,
de receber cumprimentos nas praças,
de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas
e os primeiros lugares nos banquetes.
Devoram as casas das viúvas
com pretexto de fazerem longas rezas.
Estes receberão uma sentença mais severa».
Jesus sentou-Se em frente da arca do tesouro
a observar como a multidão deixava o dinheiro na caixa.
Muitos ricos deitavam quantias avultadas.
Veio uma pobre viúva
e deitou duas pequenas moedas, isto é, um quadrante.
Jesus chamou os discípulos e disse-lhes:
«Em verdade vos digo:
Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros.
Eles deitaram do que lhes sobrava,
mas ela, na sua pobreza, ofereceu tudo o que tinha,
tudo o que possuía para viver».

04 novembro 2021

Carta a um anjo


Foi hoje, mas há 20 anos.

É atribuída a Virgina Woolf a ideia de que nada aconteceu, na verdade, até ser descrito ou registado. Talvez por isso eu tenha decidido encimar a minha carta com esta imagem do relatório anual da Childhood Cancer International, organização onde estou de alma e coração. Quem aparece na capa tem uma personalidade registada, com uma doença descrita. Existe, portanto. 

Conheci a criança que está na capa a poucos dias de fazer um ano, a poucos dias de ser diagnosticada com um neuroblastoma. Tal como referi no meu texto de abertura, talvez a cabeça careca e os olhos sorridentes sejam uma metáfora para a forma como vivemos estes dramas: com um sentimento de desafio e esperança. Conheço a C., os pais, avós, tios e primos. Do M. só conheço uns avós; de outro M. só conheço o pai; da L. não conheço ninguém... Estes três casos, que me tocam mais de perto, estão na fotografia da capa, a fotografia da C. Não os conheço mas têm uma existência real, descrita, chorada tantas vezes. Neles, como em tantos outros, o desafio e a esperança vêm com proporções desiguais, sempre injustas, porque não devia haver desafio. O desafio de uns pais é amarem e educarem os filhos, não ensaiarem despedidas ou adquirirem um vocabulário médico para o qual o nosso coração não está preparado.

O pai do M., com quem falo há meses e que só vi uma vez, num fio de tarde choroso e difícil para os dois, está a despedir-se do filho que tem 11 anos; os pais da L, que não conheço, vão ter de despedir-se da filha que tem 11 anos, mas ainda não é o tempo para eles.  Qual é o tempo para nos despedirmos de um filho? Qual é o vocabulário certo para dizer a um Pai para se despedir de um filho?

Há casos que me tocam mais, e não sei se sei porquê. É o caso do M. e do pai, que eu conheci porque alguém conhecia alguém que conhecia alguém... O caso toca-me, repito. Não porque me reveja nas semelhanças (nada é igual a nada) mas porque imagino (e só posso mesmo imaginar, porque ninguém é igual a ninguém) o que é despedirmo-nos de um filho de 11 anos: despedirmo-nos hoje, amanhã, depois de amanhã, para a semana, de todas as vezes que o vemos, lhe damos um beijo ou atiramos meigamente uma bola, porque tudo - a força como que se atira e a força com que se recebe - já enfraqueceu. Despedimo-nos sem limite de vezes ou de tempo porque, como diz a Bíblia, não sabemos quando. Vigiamos, não porque alguém surgirá, mas porque alguém partirá.

Um dia receberei uma mensagem ou um telefonema e não será por bons motivos. Será o M., cujo caso acompanhei comovido e (quase) mudo, como nos versos de Sebastião da Gama, mas sem sonho. Será a L., para quem me pediram que falasse com alguém em Paris, porque ainda não era chegada a hora para a mãe. Os olhos da C, que me fitam sorridentes e orientais, mantêm a ideia de desafio e esperança. Nuns casos, o desafio da continuidade; noutros casos a esperança de que se consiga construir uma história, porque só assim o drama será suportável. 

J, em nome de todos os que te lembram, também tu protagonista de desafio e esperança.

02 novembro 2021

Da paz *

Já aqui escrevi sobre isto, estou certo. Mas também estou certo de não me lembrar quando, nem a propósito de quê. Talvez fossem apenas devaneios - como tantos dos meus textos - lidos por um punhado incompleto de fiéis leitores e outro punhado menos incompleto de pessoas que por aqui passam, diária e ingenuamente, à procura de um sobressalto criativo do editor e dono do estabelecimento.  Talvez fossem desejos meus de me ler a mim próprio. Tenho destas coisas na escrita: um misto de gozo e de pedagogia própria. Se eu ler o que escrevi é quase como se fosse outra pessoa a dizê-lo, e as coisas assumem uma relevância diferente. Sempre para melhor, adivinho eu. Até porque me acontece algo de há tempos para cá: desenvolvo um argumento e, a meio do caminho, sinto a necessidade de perguntar: estou a fazer-me entender? Do lado de lá vem quase sempre um sim, e eu, cheio de inseguranças, prefiro ler-lhes sinceridade a compaixão. 

Retomo o raciocínio: falo de paz conquistada. Há quem precise de estar em paz consigo para conquistar a paz externa; há quem precise de paz com os outros para conquistar a paz consigo próprio. Sei o que sou e a minha ordem de precedência na paz interna / externa. Mas não é disso que falo, que os que me lêem - poucos, o que é sinal de discernimento - já deram para esse peditório. A minha dúvida é esta: há alguma coisa que nos diga que uma forma é melhor do que a outra?  Isto é, há regras aconselhadas, teorias elaboradas, versículos bíblicos que nos ensinem a calcorrear o caminho da santidade para o qual temos de escolher este em detrimento daquele?

Acabei esta semana de ler as cartas que Etty Hillesum escreveu do campo onde esteve presa, na Holanda. Talvez a parte mais bonita, e que decora uma parte da contracapa, seja esta: "queria dizer apenas o seguinte: a miséria aqui é realmente terrível e, ainda assim, à noite, quando o dia caiu num abismo atrás de mim, costumo caminhar a paso enérgico ao longo do arame farpado e, nessas alturas, volta a assolar-me o sentimento de que esta vida é algo de glorioso e magnífico e que, um dia, teremos de construir um mundo totalmente novo. E quanto mais delitos e horrores se derem, mais amor e bondade teremos de oferecer em contrapartida, sentimentos que temos de conquistar dentro de nós. Podemos sofrer, mas não podemos sucumbir."

Etty Hillesum embarcaria no comboio da morte em 7 de Setembro de 1943 com os Pais e o irmão. Nenhum sobreviveu. A sua última carta conhecida data desse dia. Há referência a um postal que foi atirado para os carris. Talvez haja aqui a metáfora de uma carta que foi enviada para o mundo, não para um destinatário especial.

Etty partiu em paz. Durante dois anos, as cartas que ela escreve falam de trivialidades, deste ou daquele, mas também falam de miséria, de sofrimento, de morte. Sempre numa referência aos outros, sempre numa enorme compaixão pelo próximo, compaixão que se revelava em actos concretos, não em palavras mais ou menos bonitas. Etty condoeu-se, tratou, chorou - sempre pelos outros. Quando partiu para um destino que ela sabia não ter regresso partiu, repito, em paz. Onde foi ela buscar esta paz? Aos outros, ou os outros foram beneficiários de uma paz que era dela? 

No excerto que cito mais acima, encontro uma possível resposta para uma pergunta - onde começa a paz? - que talvez só a mim interesse. Na frase "... sentimentos que temos de conquistar dentro de nós" talvez esteja tudo...

JdB     

* publicado originalmente em 30 de Dezembro de 2015

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